Ana Cristina González Vélez, de La Mesa por la Vida y la Salud de las Mujeres, em colaboração a MULHERES EM MOVIMENTO.
Mulheres em movimento no 28 de setembro – Dia de Ação Global pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro (2)
Sob o lema “A liberdade é minha causa”, o Movimento Causa Justa, formado por mais de 91 organizações e 134 pessoas, entre elas profissionais de saúde, academicas/os, integrantes de centros de pesquisa e ativistas de todo o país, solicitaram no último dia 16, ao Tribunal Constitucional* que se declare inconstitucional o Artigo 122 do Código Penal, que estabelece o aborto como crime, por ser ineficaz, injusto com as mulheres e violar direitos fundamentais como os direitos à saúde, igualdade, liberdade e, sobretudo, porque sua existência ignora a cidadania das mulheres.
O movimento Causa Justa defende que, ao invés de constar do direito penal, poderia haver mais e melhores políticas de saúde que contribuam para prevenir mortes e complicações decorrentes de abortos inseguros e a gravidez indesejada, bem como programas abrangentes de educação sexual, informação, acesso e disponibilidade de métodos anticoncepcionais.
A sentença C-355 de 2006 representou um avanço muito importante para mulheres e meninas porque nos permitiu sair de uma penalização absoluta, na qual o aborto era sempre considerado um delito, e avançar para permitir que as mulheres optem pela interrupção voluntária da gravidez (IVG), como direito fundamental, em três casos. A saber:
(i) Quando a continuação da gravidez constituir um perigo para a vida ou para a saúde da mulher, atestado por médico;
(ii) Quando houver grave malformação do feto, que inviabilize sua vida, atestada por médico; e,
(iii) Quando a gravidez resultar de conduta, devidamente relatada, constituindo acesso carnal ou ato sexual sem consentimento, inseminação artificial abusiva ou não consensual ou transferência de óvulo fecundado não consentida, ou de incesto.
No entanto, 14 anos depois, ainda existem obstáculos estruturais para que a execução da sentença se cumpra – o que se agravou e aumentou no atual quadro de pandemia – que não puderam ser superados com os esforços do próprio Tribunal e do sistema de saúde. Essa situação viola os direitos fundamentais tanto das mulheres como de profissionais de saúde, conforme será explicado a seguir.
Os dados fornecidos pelo Relatório sobre a judicialização do aborto na Colômbia, produzido pela Procuradoria Geral da República, em que se analisa esses casos nos últimos 20 anos, mostram que 97% das mulheres denunciadas por aborto pertencem à zona rural, enquanto 3% vêm de áreas urbanas, e 30% foram vítimas de violência doméstica, violência sexual ou lesões corporais. Esses dados refletem que prevalece na Colômbia um quadro de perseguição contra as mulheres em situação de maior vulnerabilidade.
Segundo a Procuradoria, o número de casos que se relacionam com aborto com consentimento é de 4.834. Do total de casos classificados como aborto com consentimento, constata-se que 3.640 são inativos** e 4.133 estão em fase de investigação. 420 processos encontram-se em fase de execução de penas*** e 88 em estágio de julgamento.
Além disso, o que mais chama a atenção é que desde 2006 houve um aumento muito significativo das denuncias: se em 2005 foram apresentadas 98 denuncias, em 2006 já eram 168 e em 2018 (último ano para o qual a informação está completa) 383. Embora o número de casos por ano não seja constante, após 2008, o número médio de casos ronda os 372 ao ano, sem contar o ano de 2019.
Por outro lado, estima-se que no país, devido às barreiras estruturais de acesso, apenas entre 1% a 9% dos abortos são realizados no sistema de saúde, concentrados nas principais cidades. Isso significa que a maioria das mulheres recorre ao aborto clandestino, o que põe em risco sua saúde, sua vida e sua dignidade.
A demanda
O pedido apresentado pelo Movimento Causa Justa contém evidências contundentes para demonstrar ao Tribunal Constitucional que a existência do crime de aborto é a principal barreira que impede mulheres e adolescentes, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade, de optarem por uma IVG, ainda que por motivos autorizados na Lei.
O Tribunal, em 2006, reconheceu que as mulheres poderiam optar por uma IVG em todas as três causas e fazê-lo com segurança, sem arriscar suas vidas em locais clandestinos, mas esse propósito não foi cumprido porque o crime de aborto se interpõe em seu caminho.
Isso ocorre porque o fato de o aborto ser crime gera estigma e o estigma, de acordo com várias pesquisas na Colômbia e em outros países, não distingue entre o que é permitido ou não pela lei, mas permeia tudo, afetando de muitas maneiras a provisão do que é legal e um direito fundamental.
A eliminação do uso do direito penal para regular o aborto, e o recurso a outras formas de regulação que não passem pela ameaça de prisão para mulheres e profissionais de saúde, teria um impacto decisivo na redução do estigma e consequentemente no desmonte das barreiras de acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez em causas descriminalizadas.
A norma questionada também viola a igualdade, uma vez que as barreiras estruturais afetam desproporcionalmente mulheres e meninas em situações vulneráveis. De acordo com os números apresentados na solicitação, afeta principalmente mulheres em áreas rurais e remotas, mulheres com recursos econômicos limitados, as adolescentes, mulheres e meninas que vivem em situações de conflito armado ou de outros tipos de violências baseadas no gênero, como a sexual ou a física.
Por outro lado, que o aborto se mantenha como crime no Código Penal também afeta o direito à liberdade de profissão e ofício de profissionais de saúde; aqueles/as que, por cumprimento do seu dever de prestação do serviço de IVG, enfrentam estigmas sociais no âmbito profissional, sobrecarga de trabalho e o risco de serem processados judicialmente.
Em conclusão
Este ano se comemorará o dia 28 de setembro, Dia da Ação Global pelo Acesso ao Aborto Legal e Seguro, com o Festival Causa Justa, um espaço virtual onde conversas e atividades artísticas convergem para a liberdade e autodeterminação das mulheres. Os painéis girarão em torno da importância de eliminar o crime de aborto do código penal da Colômbia; acesso ao IVG em diferentes regiões do país; os novos ativismos no sul global e a situação que as mulheres latino-americanas vivenciam para acessar ao aborto.
A cota artística passará pelo humor com um espetáculo de teatro cabaré para zombar do patriarcado, por parte de Las Reinas Chulas de México, a exibição de curtas-metragens sobre o aborto e um concerto de encerramento com artistas que reivindicam o direito das mulheres a decidirem livremente. O Festival Causa Justa decorre de quinta-feira, 24 a terça-feira, 29 de setembro, através do canal da Causa Justa no YouTube.
A eliminação do crime de aborto do Código Penal é uma causa justa para as mulheres da Colômbia. Por isso, através desta ação e de todas as nossas ações e mobilizações, buscamos não só que o artigo 122 do Código Penal seja declarado inconstitucional, mas também que o Estado propicie o acesso ao aborto seguro em todo o território nacional e garanta a cidadania plena das mulheres, que se fundamenta no respeito à sua liberdade, autonomia e autodeterminação nas decisões relacionadas ao seu corpo e ao seu projeto de vida.
*Na Colômbia existe a Corte Constitucional e também a Suprema Corte de Justiça.
** De acordo com o livro de códigos fornecido pela FGN (Fiscalía General de La Nación, equivale ao Ministério Público brasileiro), os casos “inativos” são definidos de acordo com as ações processuais realizadas, mas não é especificado quanto tempo deve decorrer desde a última ação para decidir se o caso está inativo, nem quais são as ações processuais que levam à conclusão de que o processo é inativo. A análise dos dados permitiu concluir que os casos inativos são aqueles que possuem sentença ou foram arquivados. Todos os outros estão ativos.
***Os casos de “execução de pena” são aqueles em que a liberdade é comprometida por decisão judicial (artigos 38.º e 164.º da Lei 906 de 2004 – Código de Processo Penal colombiano). Os casos de averiguação são aqueles em que o FGN ainda não encontrou provas suficientes para arquivar ou “imputar” o crime – atribuindo o crime – a alguém. Embora o banco de dados use as expressões “investigação preliminar”, “instrução” e “inquérito” como diferentes, legalmente não o são. Deve-se entender que em todos os casos se trata de situações em que o FGN foi informado da possível prática de um crime, mas ainda não foi capaz de estabelecer se ele realmente ocorreu.
Tradução do espanhol: Carla Gisele Batista
Publicado originalmente na Folha de Pernambuco