Franco Fuica, trans masculino, um dos militantes mais antigos do Chile, coordenador da organização Organizando Trans Diversidades (OTD)
Estallido e política trans
Como avalia, neste momento, a conquista da Lei de Identidade de gênero?
Franco: Como movimento trans estamos terminando o processo da Lei de Identidade de Gênero, com uma sensação agridoce porque, apesar de ser o primeiro passo legal e firme para as pessoas trans, várias coisas nos deixaram incomodados como, por exemplo, a não inclusão das/os menores de 14 anos. Ou a exigência de que as pessoas trans lésbicas ou gays que estavam casadas devam escolher entre ter um matrimônio ou mudar de nome e sexo (porque no Chile não está reconhecida a união entre pessoas do mesmo sexo). E também ver que tudo de alguma forma resulta insuficiente para pessoas trans idosas, que poderão mudar o nome mas não terão nenhum tipo de ressarcimento ou reparação do dano em suas vidas em relação a trabalho decente e salário mensal, aposentadoria etc. Mas, de forma geral, a questão trans com o estallido social, ganhou um despertar. A sociedade como um todo ficou mais reflexiva.
Há violência contra as pessoas trans nas manifestações?
Há relatos, como o de uma menina trans colocada em um caminhão, logo no segundo dia, golpeada covardemente. Ela disse que ficou inconsciente e acordou jogada na rua. Tudo isso é violência policial. Converso frequentemente com pessoas trans que sentiram muito medo de participar. Como uma das coisas que se faz habitualmente são os desnudamentos, as pessoas têm muito medo. Quando você está com roupa, é um homem. Se a tira, já não é um corpo de homem. E quando torna-se um corpo de mulher, a gozação, a violência verbal e eventualmente a violência sexual podem ser maior.
O Estallido social provocou muito medo pela violência policial. Aqui no Chile ela é mais explícita contra mulheres trans do que contra homens trans. Elas chamam mais a atenção. Muitas são trabalhadoras sexuais e estão sempre expostas à violência. Elas reclamaram que ficaram sem trabalhar por muitos dias, porque as zonas onde atuavam estavam militarizadas, havia toque de recolher. Sem trabalhar não há o que comer. Nesse contexto, os clientes também deixam de procurar sexo.
A respeito das outras diversidades sexuais, a violência contra homens gays foi também muito forte. Muitas denúncias de violação física, sexual, tanto com penetração corporal de outro homem, policiais, como por pistolas, cassetetes, surras, golpes nos genitais, é o que mais se informa. Em relação às lésbicas, muito insulto (Ver informe aqui). O contexto foi de muita violência de gênero, contra as mulheres em geral.
Como o movimento trans está vendo o debate da Assembleia Constituinte?
Franco: Estamos fazendo o ativismo trans de maneira mais institucional há cerca de 10 anos. Como resultado, nos anos 2018/19, a Universidade do Chile teve como presidente da Federação de Estudantes (FECH) uma mulher trans. É a Emilia Schneider. Ela é uma mulher muito politizada, de esquerda, do Partido dos Comuns, identificado à esquerda. Eu creio que em algum momento ela vai chegar a deputada, senadora, deverá ser uma das primeiras trans a assumir estes espaços.
Quando se está trabalhando a paridade no processo constituinte, em termos de pessoas trans também poderíamos estar reivindicando um espaço. Mas creio que ainda não é o momento que o nosso movimento possa lográ-lo de maneira real.
Uma das pautas do movimento trans é a Lei Antidiscriminação, que no Chile precisa ser modificada. Há um projeto contra a violência que o governo está impulsionando. Ainda que esse governo seja de direita, sabemos que o que temos que fazer é estar denunciando e reivindicando a partir do que está sendo discutido agora e seguir com a nossa agenda.
Como tem sido o diálogo com o governo atual?
Franco: Durante o Estallido social, estivemos numa posição especial. Passados uns 5 dias do dia 18/10, o presidente chamou muitas Ongs para conversar. O governo pediu que fossem vestidos/as de branco, e assim foram, organizações de pessoas com maior poder aquisitivo, sem base social, demonstrar apoio ao governo. Nós nos posicionamos por não apoiar este governo e o que está fazendo: nos tratando mal, matando gente, mutilando as pessoas na rua. Não participamos.
Em OTD tínhamos um compromisso anterior de formação em relação ao registro civil de pessoas trans, decidimos seguir trabalhando nisso, que não é um trabalho diretamente com o governo. As outras organizações nos olharam com desconfiança. Mas, temos boa relação com os movimentos mais anarquistas, com os partidos políticos que apoiam a diversidade. Com todas as Ongs de diversidade temos capacidade de conversar e articular. Creio que isso catapultou a política de diversidade sexual e de gênero para o Estallido social, fazendo-nos mais conscientes e com alguma liderança.
Por decisão institucional, de não criar outras OTDs, o que temos feito é contribuir para criação de organizações de pessoas trans em diversas partes, em Valparaiso, Puerto Montt, Concepción, no norte já existem.
Que efeitos outros o Estallido produziu na agenda de gênero?
Franco: Da revolta inicial, e provavelmente até o dia de hoje, as pessoas adquiriram mais consciência de gênero. Há homens ativistas tão machistas quanto os policiais. Aqui se diz: machistas de direita e machistas de esquerda são o mesmo. Mas, principalmente entre aqueles que foram fazer “primeira linha”, tinham ou adquiriram uma construção mais consciente do feminismo do que tinham os de 40 anos atrás, no contexto do Golpe de Estado.
Lei de Identidade de Gênero
Como foi o processo de construção da lei de identidade de gênero?
Franco: Quando apresentamos o projeto em 2013, ele era muito conservador, inclusive patologizante. Estabelecia que o trâmite da transição deveria ser judicial, exigência de duas testemunhas e necessidade de apresentar certificado de disforia de gênero. Fez-se isso com a intenção de facilitar a aceitação ao projeto. Se apresentássemos um projeto muito audaz, provavelmente ele pararia aí.
No mesmo momento em que apresentamos o projeto, uma parlamentar nossa aliada de direita, disse que não havia acordo sobre o artigo da infância, que fosse retirado e que depois de aprovada a lei poderia levantar de novo o tema. Foi o primeiro recorte antes que virasse projeto de lei.
O que especificamente o texto previa?
Franco: Que crianças trans estariam incluídas na lei e que poderiam mudar nome e sexo a partir dos 5 anos por desejo e decisão. Isso poderia ser visto através de distintas ferramentas como visitas à psicóloga/o e outras formas pelas quais as crianças manifestam seu gênero. Entre idas e vindas, o projeto foi rechaçado na Câmara sem a inclusão das crianças.
O projeto foi promulgada no governo Piñera?
Franco: As negociações e debates atravessaram o Governo Bachelet. Quando Piñera assumiu em março, os temas trans estavam muito candentes. Piñera havia dito que as crianças trans poderiam ser “curadas”! Mas então o filme “Uma mulher fantástica”, com a atriz trans Daniela Vega, ganhou um Oscar. Em um evento de lançamento do Informe de Direitos Humanos, e Piñera teve que ceder à pressão, ela disse em seu discurso: as crianças trans não se corrigem, não são corrigíveis e as pessoas trans somos trans! E não está na legislação que podemos mudar nossos nomes com dignidade. O presidente se viu forçado a fazer uma Comissão Mista e nós seguimos trabalhando. Finalmente a lei foi promulgada em 28 de novembro de 2018. Estabeleceram 4 meses para instalar uma política de pessoas trans que, todavia, até o dia de hoje (abril de 2020) não está instalada. O que temos instalado é o registro civil aonde trabalhamos para capacitar a todos os oficiais do Chile.
Quais dificuldades práticas atingem as pessoas trans no Chile?
Franco: Primeiro que não sabemos quantas pessoas trans existem no país. Nas pesquisas nacionais, quando se pergunta a identidade de gênero ou o pesquisador não tem informação suficiente para perguntar ou quem responde não tem informação para responder.
O tema dos hormônios também é um problema. A testosterona, por exemplo, está em escassez. Em termos práticos as pessoas não se preocupam com as pessoas trans e as trans masculinas são muito mais invisíveis dentro do coletivo. São questões que, se não tomar em conta de uma perspectiva mais sorora ou fraternal com outras intersecções, dificilmente vamos alcançar visibilizar algo.
E com a classe médica? Como é a relação?
Franco: Aqui temos boa relação com o Colégio de Médicos e com algumas escolas de medicina, mas há muita patologização por parte da medicina. Aí se coloca um limite entre a medicina e o movimento trans. A patologização que temos vivido é constante. Nunca se deteve porque os médicos tão pouco entendem que estão patologizando. Eles pensam que estão fazendo o bem quando dizem que a pessoa tem uma disforia. Não entendem que há liberdade de poder eleger ou poder sentir o seu gênero e viver como quiser. Há muitas coisas que não conseguem entender. Inclusive, isso também ocorre dentro do movimento feminista.
Feminismo e pessoas trans
Fale um pouco desta relação com o movimento feminista, das contradições…
Franco: Eu entendo que há uma gradação confusa e complicada com o movimento feminista. Eu a encaro numa perspectiva anedótica. O movimento feminista tem mais de duzentos anos, cresceu com todas as dificuldades do fato de ser mulher. Chegou num ponto em que gerou uma tremenda abertura para outras coisas, para entender o mundo com maior igualdade, até como maior carinho! De uma maneira mais cuidadosa, o feminismo entrega muitas ferramentas para ver o mundo de outra forma. E, então, chegam pessoas que vão mais além da lógica de ser mulher e ser a sujeita oprimida e diz, por exemplo, que tem qualidades masculinas, tem pênis, testículos, mas sente-se mulher e ainda mais oprimida. Então surge a questão de reconhecer essa pessoa, que não é a sujeita própria do feminismo. E aí uma parte do movimento diz: temos lutado para as mulheres e hoje em dia chegam outras pessoas que não havíamos convidado para “esta festa”.
As feministas não estão fora, tão pouco, da lógica da patologização. Muitas o entendem muito bem, outras não. Eis aí que surge o movimento de feministas radicais trans excludentes, que defendem o feminismo somente para mulheres com vagina. E a trans feminina, que também é oprimida, fica de fora. O trans masculino, que também tem uma vivência feminina acerca do assédio, da violação, do aborto, também fica de fora. Eu creio que desta tensão surge a oportunidade de novos feminismos, do trans-feminismo.
Desigualdade social
O discurso do senso comum costuma ser de que o Chile é uma nação rica economicamente. Não parece ser isso mostrado pelo estallido.
Franco: O Chile era, pelo menos para a região, um país quase de primeiro mundo, muito desenvolvido. Mostrou-se como um país que saiu da ditadura, da pobreza, de maneira muito airosa. Efetivamente teve gente que lucrou muito. Mas há muita desigualdade. Tem gente que não tem problema de dinheiro e nem sabe o que é isso, tem tanto que não dimensiona. Por outro lado há gente que também não dimensiona porque não sabe o que é ter dinheiro e nunca o tem. Então tão pouco consegue dimensionar quanto é um salário mínimo, quanto você alcança com ele. Tem gente muito pobre que vive em situações de pobreza cíclica: não tem dinheiro, não tem oportunidade, não tem nem ideias e tão pouco têm como desenvolvê-las. É uma pobreza constante.