Danae Sinclaire é psiquiatra, feminista, trabalha no Departamento de Direitos Humanos do Colégio de Médicos de Santiago e na organização CINTRAS com vítimas de violação de direitos humanos e com atenção à saúde mental.
Violação de direitos humanos no contexto do estallido social
O que é o Colégio de Médicos? Qual tem sido o seu papel durante os protestos?
Danae: O Colégio de Médicos é a agrupação gremial de médicos (corresponde, no Brasil, a um conselho de medicina). No Departamento de DH atuamos para enfatizar a importância dos direitos sexuais e reprodutivos dentro do conceito de Direitos Humanos. No estallido social, o papel do Colégio de Médicos em geral, e do Departamento de DH em particular, tem sido o de cadastrar e compilar testemunhos de violações de DH, assim como fazer levantamentos paralelos aos que fazem outros organismos do Estado acerca de lesionados, de lesões oculares, torturas e abusos sexuais. Além disso, assessoramos os organismos de saúde, tanto os estatais quanto os surgidos no curso dos movimentos/protestos.
Eu participo de um grupo que se chama “Saúde em Resistência”, que oferece atenção gratuita e voluntária aos feridos das manifestações. E o Colégio de Médicos também tem assessorado esses grupos para que as evidências possam ser utilizadas no futuro em processos judiciais. Por exemplo, em relação às lesões oculares por tiros, denunciou-se que os projeteis continham metal, não eram de borracha, contrariando o que se dizia. A quantidade de lesionados oculares, a gravidade dos casos e a epidemia de mutilados teve um papel importante para frear um pouco a prática por parte de carabineiros. O mesmo com outras práticas, por exemplo, o uso de substâncias químicas tóxicas nos gases e água.
Há outras organizações, como a Cruz Vermelha, que também participam do cuidado aos feridos?
Danae: Há muitas organizações que estão oferecendo primeiros socorros. Existe uma rede de postos que funciona à medida da necessidade e esses são paralelos aos postos da Cruz Vermelha. Por outro lado existem as brigadas, ou os piquetes, grupos normalmente formados por estudantes de medicina ou gente com capacitação em primeiros socorros. Eles saem protegidos por equipamentos completos de segurança: capacete, escudo, lanterna, botas, joelheiras, porque estão expostos à violência dos carabineiros. São alvos de disparos, água e gases. Precisam usar também máscaras e óculos de proteção. Eles se encarregam de atender feridos sem gravidade.
Isso significa que os carabineiros não respeitam em nada protocolos de direitos humanos?
Danae: Em nada! Não surpreende porque já tínhamos tido sinais deste comportamento nos conflitos do sul, na Auracania, com os mapuches. Mas a verdade é que o que temos vivido desde 18 de outubro nos deixou impactados/as, porque o nível de impunidade foi muito surpreendente.
Como se dá o registro das ocorrências?
Danae: Se um ferido chega à rede de voluntários, além de lhe oferecer atenção, é realizada uma constatação de lesões no marco dos direitos humanos. É como uma ficha clínica detalhada do que ocorreu, com os testemunhos do paciente. Normalmente há assessoria jurídica também. Se o paciente quer denunciar, pode-se, por exemplo, tirar fotos das lesões. E depois contactam advogados/as para fazer o seguimento do caso, normalmente com denúncia ao Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH). O INDH é uma instituição estatal, mas é independente do governo. Tem um Conselho independente, alguns/mas conselheiras/os são da sociedade civil, outros/as são nomeados/as por poderes do Estado que elegem uma/um diretora/or com certa autonomia em relação ao governo. Obviamente que há “matizes” políticos.
E quanto à violência sexual. Existem protocolos de atenção em relação ao aborto legal para esses casos?
Danae: Sim, há um protocolo de atenção de violação de qualquer tipo, não somente por agentes do Estado, mas de violações em geral, em que se prevê a entrega de contracepção de emergência, de profilaxia para enfermidades venéreas e depois se encaminha ao Instituto Médico Legal (IML). Agora, é muito diferente quando ocorrem violações por agentes do Estado, em delegacias ou no contexto de manifestações. Normalmente, as pessoas não se atrevem a denunciar. As denúncias de abusos sexuais mais comuns no contexto dos protestos variam desde desnudamento a “sentadinhas” (abaixar com as pernas abertas). Há também denúncias de violação com penetração por objetos, mas são poucas. Creio que há mais, mas evidentemente a denúncia é mais complexa. Nem todas essas pessoas/mulheres recorreram aos serviços de saúde, por medo, pois o profissional de saúde tem a obrigação de fazer uma denúncia. E a quem vai denunciar? Aos mesmos agentes do Estado que violaram!
No Chile há, portanto, obrigação do serviço de saúde de denunciar os casos de violação?
Danae: Se chega alguém ao hospital e declara que foi violada, existe a obrigação de denunciar por parte do pessoal de saúde. Isso, no entanto, pode ser interpretado de distintas maneiras. O direito do segredo médico em relação ao/à paciente pode ser reivindicado neste marco. Mas nunca se sabe com que médico se vai “topar” e de que maneira este vai interpretar a lei. Então vai depender do médico que atenda na urgência. Evidente que há muito medo porque nem todos são criteriosos..
E a violência do Estado contra manifestantes? Quais foram as mais frequentes?
Danae: O maior número foi de traumas oculares. Mais ou menos 370 (em 14 de janeiro, data da entrevista), é uma cifra que é atualizada todos os dias. Nestes, há distintos níveis de perda de visão. Há ao menos 2 casos de perda total nos dois olhos e deve ter uns 40% dos 370 casos que perderam quase totalmente a visão no olho lesionado.
Foram feitas denúncias, a maioria delas realizadas de forma expedita através do INDH ou por outras organizações que defendem vítimas de violação. A questão é como se assegura algo além de uma denúncia penal, que suspeitamos que provavelmente não vai chegar a nenhuma parte, posto que basicamente é muito difícil identificar o carabineiro que manejava a arma. Deverão haver processos civis contra o Estado demandando reparação, indenização e reabilitação integral, além dos processos penais, que duvidamos que possam chegar a estabelecer penas efetivas de encarceramento. Importantes também são as sanções civis. Nesse caso, há um precedente, já que em 2011 também houve lesionados oculares. Um deles ganhou uma demanda do Estado, com indenização. Eu espero que se consiga ao menos a reparação monetária e a reabilitação e acesso a tudo o que tem que ver com a restituição.
Qual o perfil das vítimas, especialmente o sexo?
Danae: As agressões sexuais estão acontecendo bastante: o desnudamento e a sentadinha contra mulheres. Outra prática que temos visto é a violação ou sodomização de dissidentes sexuais. Houve o caso emblemático de um estudante de medicina, que denunciou a violação, porque tem uma posição social que lhe permite denunciar. Mas quantos como ele, em situação de pobreza, de maior vulnerabilidade, não denunciam?! Nem todas/os recorrem a organizações da sociedade civil tampouco. A sociedade civil apenas está se rearticulando. A partir do estallido social estão surgindo novas organizações, as pessoas estão se articulando na comunidade, os bairros estão se mobilizando.
As denúncias tem alterado a violência dos carabineiros? Continuam, por exemplo, usando soda cáustica?
Danae: Não mudou e sim continuam usando soda cáustica, pelo menos até a sexta feira passada. As pessoas chegavam vermelhas e gritando de dor, depois de terem sido atingidas pela água jorrada do guanaco. Às vezes penso que estão alterando seus métodos, porque quando se fazem denúncias e se questiona a ação policial, eles mudam suas práticas para evitar que a denúncia ganhe escala.
Todos os dias em que vou à Praça da Dignidade sinto que o ar já está contaminado…
Danae: O que acontece é que estão usando três gases: vansaid, um gás vomitivo e um gás verde que compromete a consciência. O van said é amarelo e o verde se chama hexacloretano, ambos são ilegais. O gás mais comum que estão usando é o gás lacrimogêneo, mas aqui estão usando em quantidades e proporções absurdas! Começam a atirá-lo assim que inicia a concentração das pessoas, para deixar o lugar irrespirável. O problema não é só o que se usa, senão como se usa. Agregam agentes químicos ou tóxicos à água do guanaco. E não estão usando só soda cáustica. Usam substâncias irritáveis, de distintos tipos.
Há coisas que são sistemáticas. Não é um carabineiro que descumpre o protocolo, senão que todo o grupo de carabineiros que vai dispersar a manifestação faz uso das armas de dispersão de maneira incorreta. Se há 400 lesionados oculares, não foi um único carabineiro que agiu fora do protocolo. Não se trata de se está havendo ou não violação dos direitos humanos. O governo reconheceu que há violações. O problema é: quem é responsável?
E quanto ao acompanhamento psicológico para as pessoas vitimadas?
Danae: Está se articulando uma rede de psiquiatras e psicólogos voluntários/as para a atenção de primeiros socorros psicológicos. Muito importante é o seguimento a médio prazo de pessoas com alguma sequela psicológica. Nem todas as pessoas que sofreram trauma ocular vão necessitar de uma atenção psiquiátrica, mas a grande maioria vai necessitar de um acompanhamento psicológico. O importante é não individualizar ou patologizar o caso como um problema individual, mas sim resultante de uma violação coletiva. É muito importante que as pessoas que trabalham em saúde mental tenham um enfoque de direitos humanos, nestes casos, para que não se trate alguém que estava na “linha de frente” como um caso exclusivamente pessoal, mas sim como uma pessoa violada num protesto de massa.
Como você está vendo este processo de mobilização social e política no país?
Danae: Esta é uma difícil pergunta! Há o espanto e a emoção, a ternura, a alegria de estar vivendo uma situação como esta. Sinto-me como numa espécie de montanha russa emocional, ver diariamente, por um lado, uma mudança e mobilização para todas as pessoas. E, por outro, o espanto de viver uma situação de repressão sem nenhum tipo de freio democrático, ou seja, nos demos conta da fragilidade democrática. A transição democrática não aconteceu na forças policiais e militares para assegurar o famoso “nunca mais”. Há também muita frustração, porque levamos três meses de protesto, mas o governo continua avançando sua agenda de forma contrária ao que dizem as ruas. O grande problema do Chile é um sistema político que permitiu um certo acordo entre o empresariado e grande parte das duas coalizões políticas principais. Então não é só responsabilidade da direita, porque ela não tem maioria no parlamento. Parte da elite política do setor de “oposição” também está votando leis com o governo, está evitando que Piñera caia pelas violações de direitos humanos. Criaram-se obstáculos para uma arguição constitucional que seria a forma democrática de sacá-lo da presidência. É necessário, para que haja paz social neste país, que ele se vá.
Vemos com um pouco de temor e incerteza o que pode vir nos próximos dois anos. Por um lado pelas leis que estão no Parlamento, por outro lado, pelo processo Constituinte. Parece que não ganhamos nada, exceto o sentimento de estar organizados pela primeira vez em 40 anos. Ter uma nova Constituição que não diga muito seria o fracasso do processo, porque significaria que não alcançamos as maiorias suficientes para ter uma Constituição que solidamente proteja o direito à água, o direito à saúde.
O Colégio de Médicos vai apresentar candidatura para a Assembléia Constituinte?
Danae: Não discutimos. Ainda não se sabe bem como se vão formar as listas. Não sabemos se os grêmios e os sindicatos vão poder participar e como. Eu creio que deveria haver alguém, para fazer a Constituinte também diversa neste sentido. Eu espero generosidade dos partidos políticos, porque todavia não se destravou a discussão sobre se as candidaturas para a Constituinte vão poder ser candidaturas independentes ou terão que vir dentro das listas de partido.
A nova lei do aborto
Como você vê o atendimento ao aborto legal no país depois da reforma de 2017?
Danae: Temos uma lei que nasceu, não morta, mas agonizante em razão da amplitude da objeção de consciência na sua regulação. Tem sido muito lenta a implementação da lei e temos tido problemas com a objeção de consciência institucional e também individual, porque os médicos, em geral, são muito hierárquicos. Há uma posição médica majoritária a favor do aborto, ao menos dos 3 causais definidos pela lei. Mas se você dá entrada num hospital e o chefe do serviço de ginecologia é um objetor, seja por temor seja para não se indispor com o ele, todas/os medicas/os desta instituição se declaram objetores, ou quase todos. E se há um ou dois mais rebeldes, estes serão sobrecarregados de trabalho. O sistema público de saúde deveria ser capaz de garantir que haja médicas/os não objetores em todas as regiões, mas isso é difícil. Por outro lado, nos serviços que são uma parceria público-privada, as clínicas se declaram objetoras em sua maioria.
O Colégio de Médicos tem um posicionamento a este respeito, fez alguma coisa para alterar esse quadro?
Danae: Nós, do Departamento de Direitos Humanos, tentamos coletar os casos, por exemplo, da perseguição laboral a não objetores e fazer denúncias ao INDH. O Colégio de Médicos, em geral, tem mantido uma posição mais neutra. Concorda com a objeção de consciência individual.
Há muitas/os profissionais que objetam por comodidade. Deveria haver incentivos para que as/os profissionais não objetassem, como por exemplo, um bônus para não objetoras/es ou concursos para não objetores. Deveria existir sanção e fiscalização. Se um profissional afirma que é objetor de consciência porque é católico praticante, peça-se o certificado de batismo, crisma e que ele vá à igreja todos os domingos.
São altos os números das que recorreram à interrupção da gravidez desde que foi aprovada a lei dos 3 causais?
Danae: Não tenho os números, creio que não superam 2.000. No caso de inviabilidade fetal, os diagnósticos são sempre feitos pelos perinatologistas, que também não querem se comprometer, declaram viáveis coisas que são inviáveis; também aí há muita reticência para poder declarar uma gravidez inviável.
No Chile os evangélicos estão com a mesma força que possuem hoje no Brasil?
Danae S.: Ah, eu espero que não! Há muitos. A queda de credibilidade e os escândalos sexuais da Igreja Católica fizeram também crescer fortemente as igrejas evangélicas no Chile. Sobretudo nos setores mais populares, como no Brasil, estão chegando com força. Creio que isso vai ser um problema no futuro, opinião pessoal.