A agenda dos direitos sexuais e reprodutivos já há bastante tempo tem sido objeto de ataque de setores religiosos dogmáticos e outros grupos refratários à pluralidade das decisões sobre a vida sexual. Mas desde o começo de 2015, esse ataque ganhou densidade e velocidade no Congresso Nacional por efeito da nova composição da Câmara e, mais especialmente, da eleição de Eduardo Cunha para presidente da casa. Nesse contexto, projetos de lei de caráter regressivo forma retirados das gavetas e, em vários casos sua tramitação foi acelerada. Entre eles, o projeto 6583/2013, conhecido como Estatuto da Família, que foi aprovado no final de setembro em Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Segundo o texto do projeto, a definição de família restringe-se à união entre homem e mulher. Seu alvo são as uniões entre pessoas do mesmo sexo reconhecidas em 2011 por decisão do Supremo Tribunal Federal e posteriormente habilitadas como casamento por regulamentação do Conselho Nacional de Justiça. Mas a lei, se aprovada, terá efeitos deletérios sobre outras formas de organização familiar.
Adicionalmente, o artigo 3 do estabelece que “é dever do Estado, da sociedade e dos poderes públicos garantir à entidade familiar a efetividade do direito à vida desde a concepção, o direito à saúde, à alimentação, à habitação, à cultura, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à vida em comunidade”. Essa inclusão do direito à vida desde a concepção se dá ao arrepio das definições constitucionais de 1988 – quando proposta com esse teor não foi aprovada – e gera insegurança jurídica ao criar um dispositivo legal que colide com os casos em que a interrupção da gravidez é prevista por lei. Pela norma regimental, o projeto do Estatuto — por ter passado por uma Comissão Regimental — será de imediato levado ao Senado para aprovação final. Mas a deputada Erika Kokay (PT-DF) e o deputado Marcelo Aguiar (DEM-SP) pediram vistas ao mesmo tempo, o que vai retardar sua aprovação final e estão sendo previstos debates e protestos em todo país contra os conteúdos problemáticos dessa quase aprovada nova lei (clique aqui saber mais sobre o conteúdo do PL 6583).
Esse conteúdo regressivo não surpreende quem acompanha de perto o cenário brasileiro. Uma gama de outras iniciativas tramitam no Congresso de modo a dificultar o direito ao aborto, cuja discussão tem sido cada vez mais difícil diante do clima agressivo alimentado por setores contrários ao direitos ao aborto legal e seguro. Isso pode ser ilustrado pelos conteúdos dos debates que aconteceram nas audiências públicas, desde maio, na Comissão de Direitos Humanos do Senado para debater a proposição legislativa SUG 15/2014, que propôs a oferta de serviços de aborto legal no SUS até a 12ª segunda semana de gestação. Tais debates foram acompanhados de perto pelo Observatório de Sexualidade e Política (SPW) (saiba mais aqui).
No dia 24 de setembro – ou seja, no mesmo dia em que foi aprovado o Estatuto da Família — teve lugar a última dessas audiências (saiba mais aqui) para qual foi convidada a feminista nicaraguense Teresa Blandón. Nessa oportunidade e em entrevista publicada pelo jornal O Globo, Teresa relatou sobre as condições complexas de corrupção e barganha política que em seu país abriram espaço para a criminalização absoluta do aborto, eliminando até mesmo o aborto terapêutico que estava inscrito no Código Penal desde o final do século XIX; e compartilhou informações quanto ao efeitos deletérios dessa reforma sobre a saúde das mulheres. Essas são análises que não deveríamos perder de vista no contexto brasileiro, onde também têm sido sequenciais os ataques aos permissivos que autorizam o aborto no Código Penal de 1940.
Compõe esse contexto hostil o PL 5069/2013, do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara no dia 21/10. O texto tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto. O projeto também condiciona o atendimento de mulheres vítimas de violência sexual nos serviços de aborto legal à realização de exame de corpo de delito. Antes da aprovação, o PL mobilizara movimentos sociais e parlamentares envolvidos na defesa dos direitos das mulheres, que organizaram uma audiência pública sobre o PL. Através de procedimentos regimentais, as deputadas Érika Kokay, Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e o deputado Wadih Damous (PT-RJ) conseguiram retardar a tramitação do projeto por algum tempo, mas foram vencidos pela articulação de setores anti-aborcionistas que lotaram a sessão de aprovação, na qual feministas foram impedidas de entrar. O texto irá para votação no plenário da Casa antes de ser encaminhado ao Senado Federal.
O PL 5069/2013 representa uma ameaça direta aos serviços de saúde e atenção a mulheres vítimas de violência sexual, ou seja, os serviços que possibilitam o aborto nos casos de estupro. Por isso, sua aprovação foi amplamente criticada por diversos setores da sociedade civil, da academia e do mundo político.
Para concluir, seja com relação aos Estatuto da Família, seja com relação ao PL 5069/2013, os próximos dois meses e meio da atual legislatura serão conturbados. Os setores conservadores estão em plena articulação para a votação do projeto de lei 7.382/2010 na Comissão de Direitos Humanos da Câmara. O texto, também de autoria do deputado Eduardo Cunha, criminaliza a chamada “heterofobia”. O projeto é uma forma de fazer contraponto à agenda de promoção e garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, sobretudo na atual conjuntura em que o deputado e presidente da Câmara Eduardo Cunha é alvo de acusações graves de corrupção e busca desviar o foco das atenções.
Imagem do Post: Colombina de Hifa Cybe
Compilação
O Observatório de Sexualidade e Política (SPW) fez uma compilação de notícias, artigos e reações sobre os projetos que são objeto da análise publicados nas mídias sociais e na grande imprensa.
Deputada se arrepende após aprovar projeto que dificulta aborto pós-estupro – Último Segundo
Incrível! Quando Cunha é alvo de denúncias, propostas ruins são votadas – Blog do Sakamoto
Câmara aprova projeto que dificulta aborto legal e pune venda de abortivos – Folha de São Paulo
CCJ aprova projeto que criminaliza anúncio de métodos abortivos – O Estado de São Paulo
CCJ aprova proposta que torna crime indução ao aborto – Época
CCJ da Câmara aprova projeto que torna crime ajudar mulher a abortar – G1
Comissão aprova projeto que dificulta aborto após estupro – O Globo
CCJ da Câmara aprova projeto que modifica atendimento a vítimas de violência sexual – R7
Projeto de Cunha dificulta aborto legal após estupro – Zero Hora
Vítimas devem passar por corpo de delito antes do aborto, decide comissão da Câmara – Fato Online
Nota do XII Encontro Internacional Mulher e Saúde contra a aprovação do PL 5069/2013
De Volta para o Passado no Brasil de Cunha – Carta Capital
O mundo de Cunha – Hélio Schwartsman
Restringir aborto em caso de estupro é retrocesso – O Globo
A polêmica tese de Cunha contra aborto: ‘Atende a interesses supercapitalistas’ – BBC Brasil
Nota de repúdio ao PL 5069/2013 da Defensoria de SP e CLADEM Brasil
Abrasco manifesta-se sobre retrocesso no debate dos direitos reprodutivos – Abrasco
Escudo de Cunha, bancada ‘Bala, Boi e Bíblia’ faz avançar pauta conservadora – El País
Direito da mulher e estado laico estão na mira de Cunha – Brasil Atual
Seu direito a aborto no caso de estupro pode ser tirado de você. Entenda o peso disso – Cenário MT
‘Para lei, palavra da mulher não basta’, diz feminista sobre projeto de Cunha – Folha de São Paulo
Mulheres pagam a conta de Cunha – Carla Rodrigues
Sentença de morte para mulheres – Mariliz Pereira Jorge
Projeto de Cunha é uma ameaça ao aborto legal – Claudia Collucci
Relator diz que projeto sobre aborto não atinge casos em que ato é permitido – EBC
Relator vai alterar projeto sobre atendimento a vítima de violência sexual – Cenário MT
5 projetos de Cunha que são um retrocesso para os direitos humanos – Brasil Post
O Estatuto da Família. Que família? – JB
Mobilização busca combater aprovação do Estatuto da Família na Câmara – IBDFAM