Sonia Corrêa
Na última segunda-feira (2 de maio), a minuta de uma decisão dos 9 ministros da Suprema Corte dos EUA, escrita pelo juiz Samuel Alito e vazada para o site Politico, corroborou o que há algum tempo é dado como plausível: a maioria conservadora da Corte parece haver decidido pela derrubada da decisão sobre o histórico caso Roe vs. Wade, de 1973, que reconheceu a constitucionalidade do direito ao aborto. O presidente da Corte, juiz John Roberts, ponderou que a decisão vazada não é a palavra final do colegiado. Mas o fato teve uma sísmica repercussão nos EUA e no mundo, incluindo no Brasil.
Esses robustos sinais de que Roe vs Wade poderá ser derrogada devem ser lidos como a culminação de uma trajetória de curso longo. Como um efeito de cinquenta anos da “revolução conservadora” contra a democracia sexual, para usar o termo clássico de Eric Fassin. Tão logo a decisão Roe vs Wade de 1973 definiu que a premissa constitucional de direito à privacidade garantia as mulheres o direito ao aborto, as forças antiaborto reagiram com vigor. Em seguida foi aprovada a emenda proibindo o uso de fundos públicos federais para custear serviços de aborto. Alguns anos mais tarde, durante o governo Reagan, adotou-se a chamada Regra da Mordaça que proíbe o uso de recursos da cooperação internacional americana para financiar programas da sociedade civil que em outros países promovam o direito ao aborto ou ofereçam serviços, e foram suspensas doações para o fundos de população das Nações Unidas. Essa regra foi abolida nos governos Clinton e Obama e reinstalada nos dois governos Bush (pai e filho), assim como no governo Trump, quando foi ampliada, sendo de novo suspensa por Biden.
Além disso, desde os anos 1980, foram feitas as chamadas “operações resgate” que assediavam mulheres que entravam em clínicas de aborto. Uma prática depois adotada em outros países como, por exemplo, aconteceu no Brasil, em 2020, no famoso caso da menina de Guriri. Mais grave ainda entre os anos 1990 e 2015, vários médicos foram assassinados ou vítimas de tentativas de assassinato e clínicas foram bombardeadas. Paralelamente, legislações locais foram adotadas nos estados, restringindo o uso de fundos públicos estaduais para serviços de aborto e acesso aos chamados abortos tardios. E as forças conservadoras desenharam uma estratégia de ocupação da Corte Suprema, conseguindo nomear ao menos um juiz explicitamente contrário ao direito em cada uma das quatro administrações republicanas que governaram o país desde então. Três juízes foram nomeados no governo Trump, e foi vergonhosa a operação política feita pelos Republicanos para confirmar o nome da ultracatólica Amy Barrett um mês antes da eleição em que Trump seria derrotado. Essa nomeação assegurou pela primeira vez em décadas uma maioria de juízes conservadores, ou mesmo ultraconservadores.
Quando eleito, Biden suspendeu uma vez mais a Regra da Mordaça e os democratas apresentaram e aprovaram na Câmara uma lei nomeada como Women Health Public Act, que inclui o direito ao aborto. Enquanto isso propostas legislativas propondo restrições draconianas ao aborto eram apresentadas nos estados governados pelo Partido Republicano, sendo que seis delas forma aprovadas, a mais restritiva sendo a lei texana que reduz o limite gestacional a sete semanas (quando uma parcela considerável de mulheres não sabe ainda se está ou não grávida). Essa leis foram contestadas judicialmente e duas delas chegaram à Suprema Corte, as lei do Texas e do Mississipi.
O texto de decisão da maioria vazado foi redigido pelo ultraconservador juiz Alito e, ao propor a derrogação de Roe vs Wade, diz respeito ao julgamento da lei do Mississipi. O caso foi objeto de uma audiência pública em dezembro de 2021 e, já então, como bem analisa Françoise Girard, a maioria conservadora deixou claro seu objetivo de repudiar quase cinquenta anos de jurisprudência firmada. Tanto assim que, no dia 10 de dezembro, o blog Debatable do New York Times perguntou a várias pessoas, inclusive a mim, quais seriam os impactos do fim de Roe vs Wade.
Ou seja, o conteúdo da decisão vazada não é exatamente uma surpresa, mas o vazamento é um fato lamentável que compromete a credibilidade da Corte já afetada por outros episódios, como por exemplo evidências sobre operações de tráfico de influência de Virginia Thomas, a esposa ultraconservadora de um dos juízes. Nesse contexto de análise, não é excessivo lembrar, talvez, que a nomeação do juiz Thomas em 1992 foi precedida pelo primeiro caso de assédio sexual com grande visibilidade pública nos EUA, no qual sua ex-assistente Anita Hill o enfrentou cara a cara, em audiências públicas, com uma inabalável dignidade. Apesar das denúncias, Thomas foi confirmado pelo Senado.
A política americana relativa ao direito ao aborto, para o bem ou para o mal, sempre influenciou o debate mundial. Nos anos 1970 e 1980, assim como outras reformas liberalizantes na Europa, mas também na Tunísia, Canada, Nova Zelândia, Turquia, Barbados e Gana, seria fonte de inspiração de lutas por aborto legal nos países do Sul Global. Mas também, desde sempre, as politicas de governos conservadores transportaram o repúdio ao aborto para outros continentes e as redes americanas antiaborto, desde os anos 1980, mobilizam forças locais contra reformas legais, especialmente, na América Latina.
A decisão, se confirmada, terá impactos globais, pois vai incitar as forcas antiaborto locais em toda parte e, sobretudo, vai liberar recursos que estavam sendo investidos para conseguir essa drástica regressão nos EUA para serem investidos no resto do mundo, inclusive na Europa, como já prevê a matéria do Guardian incluída na compilação. No Brasil, a pessoa que desgoverna o pais já anunciou que vai usar os argumentos arrolados no texto vazado para bloquear o andamento da ADPF 442 no STF (mesmo quando não existam meios jurídicos ou legais para tanto). Assim sendo, como escrevi na nota para o Debatable, mais que nunca a luta pelo direito ao aborto precisa ser entendida e mobilizada num marco como pauta feminista inegociável transnacional, interdependente e solidária.
Em razão dessas implicações e efeitos, reunimos um conjunto de matérias escritas e multimídia, em inglês, espanhol e português, de modo a oferecer um panorama sobre o que motivou e o que pode provocar uma eventual confirmação do que anuncia o episódio dessa semana.
Inglês
Contexto e implicações globais, ideológicas e políticas
Is this how Roe ends – New York Times podcast
Of Course the Constitution Has Nothing to Say About Abortion – The New Yorker
The Right’s Bad-Faith Pearl-Clutching Over the Supreme Court Leak – Mother Jones
Yes, the Theocrats on the Court Really Are Going to Overturn Roe v. Wade – The Nation
A post-Roe America, Part 1: the Anti-Abortion Activists – New York Times podcast
This Really Is a Different Pro-Life Movement – The Atlantic
The global stakes behind America’s abortion fight – Washington Post
After victory in the US, now the far right is coming for abortion laws in Europe – The Guardian
Can Congress legalise abortion if Supreme Court overturns Roe v Wade? – BBC
Democrats Plan a Bid to Codify Roe, but Lack the Votes to Succeed – New York Times
The Supreme Court may have just fundamentally altered the 2022 election – CNN
Amy Kapczynski’ Twitter covering on Scotus
As US poised to restrict abortion, other nations ease access – AP
O que acontece em caso de derrubada do direito ao aborto?
A post-Roe map of America – New York Times podcast
If Roe Falls, Is Same-Sex Marriage Next? – New York Times
What Would a Post-Roe America Look Like? – New York Times
Abortion Pills Stand to Become the Next Battleground in a Post-Roe America – New York Times
What Roe v Wade Means for Human Rights – Human Rights Watch
The dire health consequences of denying abortions, explained – Vox
Minnesota’s abortion clinics brace for influx in wake of Roe leak – Al Jazeera
Tech Companies Are Not Ready for a Post-Roe Era – Wire
50 Years of Precedent: Will Roe v. Wade Be Overturned? – Hein Online
Where does the Anti-Abortion Movement goes after Roe? – NYT
How rare is a Supreme Court breach? Very rare – Politico
Abortion Case Leak Shows That the Supreme Court Is Broken – Bloomberg
Is Ginni Thomas a Threat to the Supreme Court? – The New Yorker
A Corte por dentro: bastidores do episódio
A Supreme Court in Disarray After an Extraordinary Breach – New York Times
Scooping the Supreme Court | The New Yorker –
Once Close Allies, Roberts and Alito Have Taken Divergent Paths – New Yotk Times
Scooping the Supreme Court – The New Yorker
The Supreme Court Is Broken. How Do We Fix It? -The Nation
How rare is a Supreme Court breach? Very rare – Politico
Abortion Case Leak Shows That the Supreme Court Is Broken – Bloomberg
Is Ginni Thomas a Threat to the Supreme Court? – The New Yorker
Reações e contra-ataques
US reacts to report on overturning of Roe v Wade abortion ruling – AlJazeera
Protests in US after leaked draft opinion to overturn Roe v Wade – AlJazeera
Biden declares right to abortion ‘fundamental’ after leak of draft Supreme Court opinion – The Hill
After Roe leak, WHO’s Tedros says safe abortions ‘save lives’ – AlJazeera
Supreme Court has voted to overturn abortion rights, draft opinion shows – Politico
Multimídia
Latin American Activists speak on Abortion Rights – Associated Press
Is this how Roe Ends – The Daily NYT
A Post- Roe Map of America – The Daily NYT
A Post- Roe America: The Anti-Abortion Activists – The Daily NYT
The Story of Roe Vs Wade – Chapter 1 Who Was Jane Roe? – The Daily NYT (archive)
The Story of Roe Vs Wade – Chapter 2 The Culture Wars – The Daily NYT (archive)
Português
A revolução antiaborto nos EUA – Folha de São Paulo
Direito ao aborto: o caso do EUA e seu reflexo no mundo – Ao ponto – podcast de O Globo
A surpreendente guinada de evangélicos sobre aborto após filme e reação feminista – BBC
O Assunto #698: O aborto (e a disputa política) nos EUA – Podcast o Assunto, do G1
Anulação de precedente nos EUA ameaça direitos reprodutivos conquistados – Conjur
Decisões que restringem direito ao aborto são contra a vida e a saúde pública – Folha de São Paulo
Por que legalizar o aborto no primeiro trimestre – Folha de São Paulo
Ameaça de retrocesso nos EUA reforça a urgência do debate sobre aborto – Veja
Retrocesso sobre aborto nos EUA serve de alerta para o Brasil – Folha de São Paulo
Possível mudança nos EUA contrasta com onda na América Latina – Folha de São Paulo
Cabides de arame viram símbolo em ato a favor do direito ao aborto nos EUA – Folha de São Paulo
Aborto sem método – Folha de São Paulo
Veja perguntas e respostas sobre possível reversão do direito ao aborto nos EUA – Folha de São Paulo
Espanhol
‘Roe contra Wade’ y el constitucionalismo del sur global – Mariana Trujillo
Aborto: el fin de un derecho en Estados Unidos – CTXT
Así se ha labrado el posible fin del derecho al aborto en Estados Unidos – Newtral
El derecho al aborto en Estados Unidos, bajo el mazo del Supremo más conservador – El País
El derecho al aborto en el mundo: el sur avanza y el norte retrocede – El País