A Cúpula de Nairóbi, coordenada pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), foi realizada entre o dias 12 e 14 de novembro e reuniu governos, organizações da sociedade civil, acadêmicos, especialistas e grupos religiosos para reafirmar o Programa de Ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo (CIPD, 1994), especialmente no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos, no marco mais amplo dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Nessa oportunidade, o pronunciamento feito pelo Embaixador Fernando Coimbra reiterou posicionamentos internacionais anteriores do governo Bolsonaro. Isso significa que, a despeito da retórica formal de alinhamento com o consenso da CIPD, o governo brasileiro de fato abandonou seu compromisso com parâmetros que constituem pilares do Consenso de 1994. Num documento que elabora uma crítica contundente a essa posição, organizações que compuseram a delegação brasileira da sociedade civil (e outras apoiadoras) afirmam:
Alertamos que, na Cúpula de Nairóbi CIPD 25, o atual governo brasileiro, reafirmou uma vez mais, que defende a vida desde a concepção….Esta afirmação não reflete a definição estabelecida na Constituição Federal promulgada em 1988 e reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal em dois julgamentos subsequentes, a saber, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510 (2008) e a Arguição Direta de Preceito Fundamental 54 (2012)…
Vale ainda destacar que o documento apresentado pelo Brasil em Nairóbi, não menciona obstáculos flagrantes ao desenvolvimento de políticas de saúde e de educação, tais como o crescimento da desigualdade social e dos índices de pobreza extrema em anos recentes ou, mais especialmente, os efeitos nefastos decorrentes da restrição dos gastos públicos determinados pela Emenda Constitucional 95. Adicionalmente, o impacto negativo da redução de financiamento para a política nacional de saúde e outras áreas críticas da política social tende a ser agravado pela proposta de eliminação da regra constitucional de vinculação obrigatória do gasto social, trazendo consequências ainda mais robustas para a população negra e indígena brasileira, sempre em situações de violência, geradoras de profunda vulnerabilidade, desigualdade e exclusão social como mostram todos os indicadores sociais, especialmente entre jovens e mulheres negras, duramente afetadas.
É, sobretudo, lamentável que, adicionalmente, o documento não faça nenhuma referência a políticas de gênero ou mesmo de igualdade de gênero, cabendo aqui sublinhar a recente intimação feita pelo Supremo Tribunal Federal ao Ministério das Relações Exteriores, no sentido de tornar transparentes documentos e diretrizes de políticas relativas a gênero, direitos das mulheres e das pessoas LGBT adotadas pelo Poder Executivo.
Subsequentemente, o Brasil — assim como já havia feito na Assembleia Mundial da Saúde (maio, 2019) e na abertura da Assembleia Geral da ONU (setembro, 2019) (ver aqui em inglês) – assinou uma agressiva declaração (em inglês) liderada pelos EUA e apoiada por Bielorússia, Egito, Haiti, Hungria, Polônia, Santa Lúcia, Senegal e Uganda, que acusa a organização da Cúpula de falta de transparência, ataca o direito ao aborto assim como os conceitos de direitos sexuais e reprodutivos e programas de educação sexual integral. Como bem afirma o documento da sociedade civil, é vital continuar sustentando no debate nacional os fundamentos de direitos humanos e da perspectiva de gênero que estão no coração da mudança de paradigma que a CIPD significou 25 anos atrás.