Brasil: A tormenta perfeita
As eleições de 2018 deixam no ar, para retomar uma imagem do jurista Oscar Vilhena, o sentimento de que não houve vitória ou derrota, mas sim que perdeu-se a democracia. A eleição deixou um rastro inédito de violência política, aprofundou a polarização em curso desde 2013 e projeta muitas sombras no horizonte. Qualquer que seja a chave de leitura para interpretar o que se passou no Brasil, gênero, sexualidade, feminismo e aborto são dimensões inequívocas dessa virada antidemocrática. Sem dúvida há muito mais que dizer e analisar do que, nos limites das nossas possibilidades, pudemos fazer como primeiro balanço da tormenta.
Além de uma ampla compilação de análises e notícias sobre o processo eleitoral, que prioriza as leituras feitas a partir de nossa angulação temática sobre seus significados e efeitos, fizemos uma síntese dos números eleitorais que ajudam a compreender preliminarmente os resultados e, sobretudo, oferecemos os resultados do estudo realizado pelo grupo de pesquisa coordenado pela parceira do SPW, Isabela Oliveira Kalil, da FESPSP, sobre os perfis e o ideário de eleitoras e eleitores do candidato que venceu as eleições. Como entendemos que os ataques a Judith Butler de novembro de 2017 foram um prenúncio da tormenta eleitoral de 2018, recomendamos a leitura do artigo então elaborado pela equipe da FESPSP. O SPW também disponibiliza o ensaio escrito por Sonia Corrêa sobre os antecedentes, efeitos e significados dessas eleições presidenciais.
Nicarágua: A crise continua. Desde abril de 2018, 1.300 pessoas estão desaparecidas e estima-se 500 mortes, 3.000 feridos e 400 processos ilegais, conforme alerta a IACHR sobre uma nova onda de repressão. Nesta ocasião, a Anistia Internacional emitiu um relatório sobre as diversas violações registradas no país desde maio. No dia 14 de outubro, mais de trinta ativistas feministas foram presas, entre elas a renomada Marlen Chow. Elas foram libertas quatro dias depois, mas enquanto estavam na prisão, Chow lançou a campanha #YoSoyPicoRojo (#EuSouLábioVermelho em português) contra a violência do Estado.
No Brasil
Direitos LGBTTIQ+
Durante o período eleitoral que terminou em 28 de outubro, mulheres trans, travestis, gays, lésbicas e mulheres foram alvos prioritários de agressões por apoiadores de Bolsonaro. Em relatórios divulgado pelas plataformas Vítimas da Intolerância e Violência Política no Brasil, ocorreram de 60 a 133 ocorrências ligadas às eleições, incluindo 36 homicídios e agressões. Priscila em São Paulo (SP), Kharoline em Santo André (SP), Julyanna em Nova Iguaçu (RJ), Jéssica em Taguatinga Norte (DF) foram agredidas e Laysa, em Aracaju (SE), foi assassinada, todas por serem trans, entre tantas outras pessoas.
Política antigênero
A política antigênero, vinculada aos ataques à liberdade de pensamento e expressão no ambiente educacional e acadêmico que, desde alguns anos, é traço forte da restauração do conservadorismo e autoritarismo no Brasil, assumiu novas proporções no processo eleitoral de 2018 e seus desdobramentos. Embora não seja possível oferecer um mapa preciso de tudo que aconteceu desde setembro nesse âmbito, já conflagrado desde algum tempo, nosso radar captou os seguintes fatos.
Na semana anterior ao segundo turno, diversas forças policiais e agentes da Justiça Eleitoral realizaram batidas e apreensões em dezessete universidades públicas em nove estados para suspender demonstrações anti-fascistas depois de serem denunciadas por grupos pró-Bolsonaro, em particular o MBL. Em decisão do STF, as ordens de 11 juízes foram consideradas inconstitucionais e então suspendidas. Também no espaço da universidade, demonstrações fascistas ecoaram após o resultado das urnas, quando uma foto de alunos da FEA-USP circulou, mostrando quatro alunos homens vestidos de personagens autoritários, portando armas e segurando mensagem ameaçadoras direcionada às mulheres. As ameaças, no entanto, são parte de um arsenal mais amplo e direcionadas principalmente aos pesquisadores de gênero e sexualidade no ambiente universitário, como nos relatou o professor da UFPE Gustavo Gomes da Costa, ameaçado diretamente, assim como seus orientandos.
Em relação às escolas secundárias, em mais uma tentativa de véspera, deputados da bancada evangélica e pró-Bolsonaro redigiram uma versão ainda mais restritiva do Escola Sem Partido (PL 7180/2014) para ser votada em sessão fechada na terça-feira seguinte ao resultado da eleição, no dia 31 de outubro. A sessão, após pressão da sociedade civil, conseguiu ser adiada, mas o relator do projeto afirmou que esse tema foi um amplamente apoiado nas ruas e confirmado pela vitória do candidato Bolsonaro. O projeto voltou a ser posto em pauta nessa semana, mas novamente foi adiado para terça-feira (13). Nesse sentido, uma nova Sugestão Legislativa foi proposta para criminalizar a “ideologia de gênero” e já conta com o apoio de mais de 308 mil pessoas. Em seguida, por uma proposição da recém-eleita deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL), que esteve no 1º Congresso Anti-Feminista, um canal de denúncia foi criado contra professores que se expressassem contra o presidente eleito. O canal foi rapidamente considerado ilegal pelo Ministério Público de Santa Catarina. No entanto, na terça-feira, dia 6 de novembro, um aluno do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro filmou o seu professor. Ainda mais temível é a decisão ainda a se confirmar sobre o futuro do Ministério da Educação. Dois nomes tem sido apontados, o General Aléssio Ribeiro Souto e Stavros Xanthopoylos, que concordam com a política anti-gênero na Educação, assim como outras medidas extremamente conservadoras para o currículo escolar. E, numa grave denúncia publicada pelo Correio Braziliense, Bolsonaro quer influenciar na composição das listas de nomes de reitores universitários.
Violência sexual
Depois da aprovação da nova lei sobre importunação sexual em setembro deste mesmo ano, cinco pessoas foram processadas. A lei aumenta as condenações por crimes e crimes sexuais e amplia o escopo dos crimes. Como é analisado num artigo do JOTA, esta é uma proposição que resgata uma teoria tradicional que aplica à equação jurídica valores morais para garantir a sua “eficiência”.
No mundo
Direito ao aborto
Em uma decisão histórica, o Comitê de Direitos Humanos da ONU emitiu o Comentário Geral nº 36 (2018), que versa sobre o artigo 6 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, especialmente sobre o direito à vida (leia em inglês). A linguagem afirma que o aborto é um direito humano, que mortes maternas evitáveis são uma violação do direito à vida e que o direito à vida começa no nascimento. O texto pode se tornar uma ferramenta importante para a luta pelos direitos do aborto em todo o mundo, para responsabilizar os governos pelas mortes evitáveis causadas por aborto inseguro.
A deputada mexicana Villavicencio Ayala, do Morena, o partido vencedor nas recentes eleições gerais, apresentou um projeto de lei federal para legalizar o aborto até as 12 semanas de gravidez, a fim de superar a grande disparidade de legislações entre os estados do país.
A confirmação de Brett Kavanaugh como Ministro do Supremo Tribunal coloca a histórica decisão Roe v. Wade em maior risco nos EUA. Enquanto isso, os tribunais estaduais continuam a restringir ainda mais o direito ao aborto. Em resposta, a organização Planned Parenthood apresentou um plano de contingência para expandir sua rede de clínicas em estados onde o direito ainda é garantido. Não menos importante, um novo serviço online chamado Aid Access, que fornece informações e acesso a medicamentos abortivos (até a 10ª semana de gravidez) foi lançado, possibilitando o procedimento a ser realizado em casa.
O Conselho Municipal de Verona, na Itália, onde ocorreram ataques de direita contra um seminário sobre o asilo de pessoas LGBTI e uma campanha antiaborto da CitizenGo em maio, aprovou uma lei que declara a cidade como um território “pró-vida”. Em contraste, na Alemanha, Franziska Giffey, a Ministra da Família, criticou severamente o papa por seus comentários mais recentes sobre o aborto, comparando a prática à contratação de um assassino.
Em Queensland (Austrália), após muito debate no Congresso, uma nova lei foi aprovada que autoriza o aborto até a 22ª semana da gravidez, e em semanas posteriores com a aprovação de dois médicos. A proposição também estabelece zonas de segurança em torno das clínicas e exige que objetores de consciência encaminhem mulheres a um médico que fornecerá o procedimento.
A Campanha Internacional (ICWRSA) publicou um relatório sobre a 3ª Conferência sobre Justiça Reprodutiva e Aborto: A Revolução Inacabada, que ocorreu em julho de 2018 na África do Sul (leia em inglês). O evento faz parte de uma série de encontros internacionais e regionais sobre o direito ao aborto, que também terão relatórios produzidos.
Políticas antigênero
O anúncio sobre a proibição dos estudos de gênero na Hungria tornou-se realidade. Universidades húngaras e europeias protestaram contra a medida que viola princípios de liberdade acadêmica e de expressão (veja uma compilação).
As autoridades dos EUA estão tentando eliminar o termo “gênero” dos documentos de direitos humanos da ONU e substituí-la por “mulher”. Em reuniões recentes do Terceiro Comitê, delegados dos EUA pressionaram pela supressão do termo descrito por eles como uma “ideologia”. Simultaneamente, um rascunho de memorando a ser emitido pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA instaria as principais agências federais a definirem gênero como determinado “em uma base biológica”. Se adotada, a definição reverterá os direitos civis e a proteção contra a discriminação de pessoas trans. Esta potencial regressão foi alvo de protestos organizados em Washington e em Nova York sob a hashtag #NãoSeremosApagados e estas diretrizes foram severamente criticadas pelas revistas Foreign Policy e Scientific American.
No Reino Unido, uma reforma na Lei de Reconhecimento da Identidade de Gênero de 2004, que quer tornar a mudança legal de gênero em documentos menos burocrática permitiu o conluio entre a direita cristã e um grupo de feministas contra os direitos trans, como sugere uma pesquisa aberta sobre Democracia, apesar de discutir muitas outras questões.
Na Parlamento ucraniano, foi apresentado o projeto de lei N. 9183 que visa “proteger a moral pública e os valores tradicionais” através da criminalização das relações entre pessoas do mesmo sexo e da remoção da linguagem sobre “orientação sexual”, “identidade de gênero”, “igualdade de gênero” e “avaliação jurídica baseada em gênero” da legislação anterior. Embora o projeto provavelmente seja rejeitado, é um sinal de possíveis regressões legais no futuro (leia em inglês).
No dia 17 de outubro, grupos anti-gênero na Argentina se envolveram em ataques contra a política nacional de educação sexual, invadindo uma sala de aula onde o conteúdo do programa estava sendo ministrado.
Direitos LGBTTIQ +
Uma proposta de emenda à Constituição para banir o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Romênia, promovida pelo Partido Social Democrata (PSD), pela organização Coalizão para a Família e pela Igreja Ortodoxa Romena, não conseguiu reunir o número necessário de eleitores ao referendo no dia 7 de outubro, porque apenas 20% dos romenos compareceram. Apesar do casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não ser legal no país, o proposição limitaria na Constituição o âmbito do casamento como a “união entre um homem e uma mulher”.
No Uruguai, a Lei Integral para Pessoas Trans foi finalmente aprovada em 19 de outubro após uma longa sessão de 10 horas no Congresso. A proposta foi fortemente atacada por atores antigênero fora e dentro do Parlamento, que argumentaram contra a lei alegando que isso provocaria um declínio adicional na taxa de fertilidade do país e que os procedimentos de redesignação sexual seriam muito caros (os mesmos argumentos usados contra o direito ao aborto em recentes debates na Argentina e no Brasil). A nova lei permite a terapia hormonal para menores, mas exige o consentimento dos pais para cirurgias e inclui reparações para pessoas trans perseguidas durante a ditadura militar.
No dia 2 de novembro, a Argentina excluiu pela primeira vez o marcador de gênero de um documento legal. Isso só foi possível devido à Lei de Identidade de Gênero, promulgada em 2012, e à Convenção Yogyakarta +10 que declara que “Toda pessoa tem direito ao reconhecimento legal sem referência ou exigindo designação ou divulgação de sexo, sexo, orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características sexuais.”
Em 17 de outubro, o Dia Internacional de Ação pela Despatologização Trans, a organização GATE divulgou uma declaração conjunta reafirmando as importantes ações com as quais os transativistas estão comprometidos em relação à despatologização e, especialmente, a CID-11.
Nos EUA, a organização Lambda Legal entrou com uma ação contra a Administração da Previdência Social alegando proteção legal para pensões e outros benefícios de pessoas LGBT cujos parceiros já faleceram.
Em Uganda, o Ministério de Ética, recorreu à lei que criminaliza a sodomia existente para proibir a criação do primeiro Centro Comunitário LGBTTI+ do país.
Trabalho sexual
Sob o argumento de combater o tráfico sexual, o Knesset, Parlamento de Israel, está debatendo uma lei que visa sancionar os clientes de prostituição. Também em Israel, o Tribunal Rabínico de Haifa anulou a condição judaica de uma prostituta.
Em 21 de setembro, o governador de Kinshasa, na República Democrática do Congo, lançou uma campanha pela “moralidade no vestuário e no comportamento” que levou ao assédio, prisão e detenção de centenas de profissionais do sexo.
O Departamento de Assuntos Religiosos da Malásia prendeu, sentenciou e submeteu uma mãe solteira a castigo corporal sob a acusação de prostituição.
#MeToo e Violência Sexual
Na Índia, o movimento #MeToo está expandindo sua trilha, desencadeada por acusações da atriz de Bollywood Tanushree Datta contra o ator Nana Patekar por assediá-la sexualmente no set de um filme há quase dez anos. Desde então, o movimento se deslocou da indústria de entretenimento e mídia para os campos da política, arte, esportes, e educação e o setor corporativo. Um de seus efeitos mais contundentes foi a renúncia do Ministro de Estado dos Relações Exteriores, MJ Akbar, acusado de assédio por dezesseis mulheres.
A decisão do Prêmio Nobel da Paz da Noruega de conceder a Nadia Murad e Denis Mukwege por seus esforços para ajudar as mulheres vítimas de abuso em zonas de conflito embora sem precedentes, deve ser situado em relação ao escândalo de assédio sexual que irrompeu no início deste ano na academia sueca.
Violência sexual
Nos EUA, onde a Lei federal sobre Violência contra as Mulheres aprovada em 1994 vai expirar, os debates se expandiram sobre a eficácia de uma resposta criminal à violência doméstica, conforme relatado por um artigo publicado pelo The Conversation sobre os efeitos e limites da lei e uma proposta de descriminalização.
Direitos das mulheres
Em Uganda, a professora e ativista feminista Dr. Stella Nyanzi, da Universidade Makerere, foi mais uma vez detida por usar mídias sociais pessoais para denunciar o assassinato e a tortura de ugandenses perpetrados pelo presidente Museveni. Em uma clara tentativa de sufocar opiniões contrárias enquanto viola a liberdade de expressão, Nyanzi foi presa por “assédio cibernético e comunicação ofensiva”. Em resposta, a hashtag #FreeStellaNyanzi foi promovida para pressionar as autoridades pela sua libertação e para reforçar a petição nº 15 de 2017, apresentada no Tribunal Constitucional, para desafiar a Seção 25 da Lei de Utilização Indevida de Computador, utilizada por Museveni, que viola a Constituição e as liberdades fundamentais.
Na Etiópia, o aumento na participação política das mulheres no Congresso, que agora tem metade de seu contingente feminino, antecedeu a votação unânime do Parlamento para nomear a Sahle-Work Zewde como a nova e primeira mulher presidente do país.
Um grupo de nove especialistas independentes instou a Arábia Saudita a libertar todos os defensores dos direitos das mulheres que foram presos por protestarem pacificamente pelo direito de votar e dirigir.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU considerou a proibição francesa do niqab (o véu islâmico de corpo inteiro) como violação dos direitos humanos e pediu uma revisão da legislação.
Uma controvérsia irrompeu em Kerala (Índia) após a decisão da Suprema Corte de manter o direito das mulheres de entrar nos templos, onde antes eram proibidas (leia uma análise feminista indiana em inglês).
Sexualidade & arte
Em consonância com o cenário político dantesco no Brasil, o SPW relembra os trabalhos de artistas durante o período da ditadura militar, para evocar como a vida e a arte persistem e resistem em meio a qualquer adversidade.
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Livros
O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Coleção Tinta Vermelha) – Esther Solano – Editora Boitempo
Cordel #ElasSim – Jeanne Marie Gagnebin, Tatiana Roque e Carla Rodrigues – n-1 edições
Artigos
“A era do humanismo está terminando”, por Achille Mbembe – Pensar Contemporâneo
Melancolia, fragmentação e a crise da práxis. Desafios da esquerda brasileira. Entrevista especial com Sabrina Fernandes – IHU Unisinos
“‘Nosso’ é a palavra que me assusta, o fascismo começa com as palavras” – IHU Unisinos
Rancière: ‘A política tem sempre uma dimensão estética’ – Revista Piauí
Dossiê | Psicanálise entre femininos e feminismos – Revista Piauí
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Oportunidades na área de gênero – outubro/2018 – Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (Unicamp)
Rio de Janeiro
Os enfrentamentos e dificuldades de ser um LGBT negrx – na ABIA, Rio de Janeiro (RJ), dia 14, às 18h.
Diálogos Foucaultianos: Loucura, Poder e Gênero – na UFF, Niterói (RJ), dia 13, às 13:30h
Retrato de Marielle: Criando pontes entre Brasil e Quênia – no Museu da Maré, Rio de Janeiro (RJ), dia 10, às 9:30h.
WOW Festival Mulheres do Mundo – na Praça Mauá, Rio de Janeiro (RJ), do dia 16 ao dia 18 de novembro