No dia 07 de março, foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) com o intuito de contestar a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal que criminalizam o aborto. A peça foi organizada pelo PSOL e pela Anis, em um contexto no qual o Judiciário têm sido o terreno mais favorável para a garantia do direito ao aborto, conforme aponta em entrevista ao SPW a advogada Luciana Boiteux, integrante do PSOL e uma das autoras do texto.
Nesta semana, a ação foi distribuída entre os membros do STF e será relatada pela ministra Rosa Weber, cujas decisões no campo do aborto têm consagrado a interrupção da gravidez como um direito da mulher. Assim foi no julgamento que reconheceu a constitucionalidade do direito ao aborto de fetos anencéfalos, em 2012, e também no voto favorável à compreensão de que os direitos fundamentais das mulheres previstos na Constituição de 1988 tornam inconstitucional a criminalização do aborto presente no Código Penal de 1940, em decisão da Primeira Turma do STF em novembro passado.
De acordo com Luciana Boiteux, “a expectativa é positiva, esperamos um debate racional, com base no direito constitucional das mulheres à sua dignidade, cidadania, liberdade e direito ao próprio corpo”, afirma.
Como você analisa o contexto de luta pelo direito ao aborto no Brasil em anos recentes e, mais especialmente, no momento atual?
A luta pelo direito ao aborto faz parte da pauta feminista há décadas, sendo o Brasil um dos países com legislação mais conservadora do mundo ocidental. Em anos recentes, essa luta foi travada por meio da resistência nas ruas com os movimentos feministas e no Legislativo por meio do acompanhamento de projetos de lei que atacam os direitos reprodutivos das mulheres e que pretendem impor retrocessos aos direitos já conquistados. No Judiciário, por atuação da sociedade civil, tivemos um importante avanço em com a ADPF 54, de 2012, sobre aborto em caso anencefalia, que ampliou os casos de aborto legal e também na decisão recente da Primeira Turma do STF, no HC 124.306, no qual o voto vista do Ministro Barroso, seguido por Fachin e Rosa Weber, reconheceu o direito à dignidade da mulher e decidiu pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto, ainda que com efeito exclusivo para o caso específico. No momento atual, estamos apostando na ADPF n. 442, protocolada pelo PSOL em 07.03.17, que pretende descriminalizar de forma ampla a interrupção voluntária de gravidez até 12 semanas.
O que motivou o PSOL, ou as mulheres do PSOL, a tomar a iniciativa da ADPF?
A motivação veio das demandas feministas e do movimento de mulheres que se fortaleceu nos últimos anos, bem como da ampliação do espaço para as mulheres na política e no Partido. Fomos contactados pela ANIS – Instituto de Bioética por sua coordenadora, Debora Diniz, que sugeriu que tal demanda fosse encampada pelo PSOL. O tema foi debatido pelo Setorial Nacional de Mulheres, que se movimentou internamente, teve o apoio da Bancada Feminista, que elegeu 11 vereadoras feministas pelo PSOL em todo o país e, finalmente, foi aprovado pela Executiva Nacional.
Nossa grande preocupação é com as dificuldades de debate do tema no Parlamento atual, ao mesmo tempo em que verificamos as urgências de tantas mulheres que morrem todos os dias em decorrência de abortos mal feitos. A Pesquisa Nacional sobre Aborto de 2016 mapeou que mais de 500 mil mulheres fizeram aborto no país em 2015. Por esse motivo, inclusive, pedimos uma liminar para impedir a prisão em flagrante de mulheres por crime de aborto e a suspensão de todos os processos por tal crime até que se julgue definitivamente o pedido, o que ainda pode demorar alguns anos.
Quais são as expectativas de vocês com relação ao desdobramento da ação?
Nossa expectativa é positiva, esperamos um debate racional, com base no direito constitucional das mulheres à sua dignidade, cidadania, liberdade e direito ao próprio corpo. Vemos como absolutamente inconstitucional essa criminalização prevista no Código Penal de 1940. Apesar das grandes conquistas das mulheres e da emancipação feminina das últimas décadas, continuamos passíveis de responsabilização penal por aborto, com base em norma redigida antes da revolução sexual, da pílula anticoncepcional, da lei do divórcio (1977) e 48 anos antes da Constituição Democrática de 1988. A criminalização do aborto é um atentado à saúde da mulher e a seus direitos reprodutivos, portanto, viola a Constituição. Confiamos na sensibilidade e no saber jurídico dos ministros do STF, apesar das pressões conservadoras que estes certamente sofrerão. Entendemos que as bases argumentativas para o nosso pedido já foram reconhecidas em decisões anteriores, como na ADI 3.510, que analisou a lei de biossegurança, em 2008, e na ADPF da anencefalia, já citada, que são importantes precedentes sobre como interpretar a questão do aborto a partir de uma análise de direitos fundamentais.
Trata-se de um debate que será feito legitimamente no STF por se tratar de direito de minorias, garantido na Constituição, que não pode ser ignorado, cabendo ao tribunal a proteção de direitos fundamentais, pela qual este deve exercer um papel contramajoritário. Nós mulheres somos maioria da população, mas minoria no acesso a direitos e por isso recorremos ao Supremo. No Parlamento e nos principais cargos executivos, não somos devidamente representadas, esperamos que o STF garanta nossos direitos.