Por José Miguel Nieto Olivar *
A primeira imagem é perturbadora. O Deputado Estadual com a segunda maior votação em São Paulo, que apresenta a si mesmo como um bebê de fala emergente, está na cidade mais pobre da Ucrânia, feita escombros e ainda fumegante, limpando com sua língua de brasileiro “branco” as fezes de uma fila de deusas loiras, moribundas, assustadas e famintas, enquanto no streaming, seus amigos celebram e gritam “Asqueroso”! Quem puxa o cântico é quem reinventou, no próprio corpo, as relações entre o essencialmente asqueroso e a política.
Os áudios da Ucrânia não são (apenas) asquerosos. São nossos, são próximos, são dos brothers, são capital político e econômico; são criminosos, são assassinos. Nós, homens brasileiros (ou mesmo latinos) na Ucrânia.
Afinal é (anti)gênero acima de tudo e sua própria sexualidade acima de todos. Ou seriam os restos fraturados, feridos e destrutivos das suas sexualidades? Mangueira de gasolina entrando na boca-buraco, ou entre as pernas, da presidenta deposta colada na caminhonete; arminha, arminha, arminha, motinho, matar; dádiva masculina do estupro para a esquerdista no poder; o “moleque” talentoso que chupa seu dedo quando faz gol e – finalmente – é condenado por estupro (também na Europa) enquanto sua gangue multimilionária acha injusto…Y así se nos va la vida, com a sexualidade deles na nossa nuca.
A segunda imagem é mais perturbadora; quiçá porque já a vi de perto muitas vezes (não vou falar aqui da Colômbia, da guerra). Homens de barbearia e crossfit, cabelos à moda, “brancos” brasileiros, pagos por dinheiros públicos, “passando o rodo” nas fronteiras e nos marcos de guerra, especialmente atrás das mulheres mais pobres, mais vulnerabilizadas, produzindo, performativa e biologicamente, a raça, a etnia, o gênero. Isso não é novo, não é excepcional. Homens deputados, homens das forças federais e estaduais de defesa e segurança públicas, homens comerciantes, homens da justiça, da Verdade, de Deus; homens que fazem as fronteiras, que “comem” nas fronteiras e assim produzem o “povo”. Aquela porque é uma deusa das neves, a outra porque é uma [____] índia, aquela porque é uma negra [____], a outra porque é peruana merece [____], a que vem ali porque é haitiana. Ah, tem uma bem, bem novinha me esperando, quer vir junto? Onde puder pagar bem pouco, sou rei; comer de graça será melhor; entre mais nova, me excito mais; onde puder ser mais fácil, melhor. E se é loira e europeia, e se estiver bem ferrada, então… Que delícia!
O mais perturbador aqui é o fato de não conseguir afirmar que há algo de terrivelmente excepcional nos áudios do Deputado sobre ele e as mulheres na Ucrânia. Nada do que o Deputado fez e disse é novo. Nada é uma exceção: nem no seu caso, nem no caso de seu campo político, nem entre nós homens. Ele foi eleito como desdobramento do sujeito pré/contra/para edipiano que nos governa. Ele se mostra como um balãozinho de diálogo que sobe de um carrinho de bebê dizendo Mamãe Falei. Não há como não resvalar para a psicanálise de boteco: Mamãefaleiqueíatematarecomerteucouroenquantoadmiravaopaudomeupaidenovededosqueprecisomatar. Enquanto tento ser um homem. E sou o homem: não cis, não trans, não branco, não nada, apenas Homem – sem natureza e sem cultura. Homem público e eleito massivamente, festivamente. Saindo do armário da brutalidade enrustida mas sem sair do carrinho de bebê.
Quando foi eleito para colocar em ato a masculinidade e moralidade que havia se tornado o “projeto da nação”, invadiu uma oficina de sexualidade organizada pelo diretório acadêmico da Faculdade de Medicina da USP, evento denunciado como “balbúrdia” pelo G1. Após a notícia e a invasão de MamãeFalei, a oficina, um espaço íntimo e reservado de reflexão e conversa, se tornou um objeto de escárnio e agressão pública, adicionando água no moinho do neoconservadorismo em plena ascensão.
Havia um problema, contudo. A oficina havia sido promovida por estudantes da todo-poderosa Faculdade de Medicina da USP. Essa mesma escola pátria em que tantos panos são passados sobre tantas histórias de abusos e assédios, de memória eugênica e patriarcal…Assim sendo, Mamãezinhaeuestounoberço teve que, supostamente, pagar mais de 100 mil reais de indenização. Vale perguntar o que teria acontecido caso a pessoa em questão tivesse invadido a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da mesma USP. Ou talvez a UNIFESP de Guarulhos ou a UFABC de São Bernardo, ou alguma outra faculdade ou universidade pública deste país.
Enfim, o buraco não é apenas mais embaixo, é um micélio sem fim.
O Homem que foi à Ucrânia fez um vídeo da invasão que até hoje é replicado, festejado e celebrado por seguidores. Ele não está sozinho; na Ucrânia não estava sozinho, não fez o que fez acidentalmente, não estava “se mostrando” para um grupo pequeno de pessoas. Mamãe Falei, como bom bebezão, sabe de comunicação. Basta desperdiçar poucas horas rastreando seus vídeos e postagens ao longo de anos recentes para entender o lugar que o Bebê que Fala ocupa no Movimento Brasil Livre e que papel jogou nas eleições de 2018. E para dimensionar a escala de sua audiência e o descalabro do que diz e propõe. Os áudios snuff da Ucrânia não são uma exceção e nem um acidente, eles espelham o continuum geológico inscrito nos nossos corpos masculinos.
Eu sei bem: não todos somos iguais… bla bla bla bla. Não, mas o mundo continua despejando sobre nós evidências brutais que deveriam nos assustar, envergonhar e nos deixar em estado permanente de aviso. Ou, então, como é possível que nós, homens, não nos levantemos massivamente contra nossos brothers?
Vale dizer que a metáfora do predador sexual é muito presente nas análises feministas sobre sexualidades masculinas. Inclusive em análises moralistas. O predador é aquele que caça e come muito ativamente, muito sagazmente, em meio à guerra, em meio ao desespero, em meio à traição. Muitas vezes é atraído por fronteiras e espaços em processo de colonização, conectando felizmente diversos desejos de conquista e expansão. Às vezes também exercita os poderes da sedução e, sempre, recorre a seus privilégios sociais. Contudo, não se trata nesse caso do heroísmo da caça e captura. Não se trata do masculino mito da coragem de um caçador-sedutor. Não se trata nem mesmo da caça inteligente que seu relato tentou projetar para os brothers. Como muitos e muitos homens, o Deputado que foi à Ucrânia fez da sua excursão sorrateira um tipo peculiar de predação: fez o que fazem urubus, abutres, ratazanas. O Deputado abutre, fazendo um péssimo uso de dinheiro público, sentiu o cheiro da morte, foi atraído por deusas sendo sacrificadas e ficou lambendo o bico e as presas. Ou, melhor, não vamos esquecer, foi sentir na sua língua a virtualidade do sabor dos excrementos das deusas sacrificiais. E quis comprar sua próxima passagem para a cidade mais pobre. Nela o “branco” brasileiro iria despejar sobre os corpos das deusas loiras, brancas e europeias o líquido fétido do projeto nacional que arrasta consigo. Tivesse esperado um par de semanas, o Deputado que foi a Ucrânia poderia ter, talvez, se refastelado nas valas comuns em Mariupol.
A experiência masculina da predação (cis, hétero, moderna), principalmente da predação praticada por ratazanas e abutres, arrasta também ressentimento, a raiva e punição dos outros como dispositivos eróticos. Como já mostraram incansavelmente estudos feministas sobre as guerras e invasões recentes, sexo brutalista e destruição andam de mãos dadas.
Queria dizer também que a celebração é só masculina, que é só cis e hétero e “branca”. Mas não posso. Essa linha não ultrapasso porque as evidências da ação são muito contundentes.
Um outro realismo?
Sabemos que predação é perspectiva e relação. Perspectivada, a predação costuma se transformar em guerra. Também sabemos que as mulheres estão mais preparadas que nós, homens, para lidar com os fins e catástrofes. Vemos e aprendemos isso dia após outro. Mesmo em condições de enorme precariedade, mesmo moribundas e ameaçadas, elas não perdem o que nós aprendemos a perder para tornar-nos homens: [complete você mesmo]. Por isso lutam como uma puta, lutam como uma trans, lutam como uma garota.
Isso me leva a ousar pensar no que poderiam fazer as deusas louras convertidas em carniça pela quase-predação patética do Deputado que foi a Ucrânia. Fabular lobas da estepe, sobreviventes do frio, das guerras seculares, da pobreza e do machismo soviético, de neonazis ucranianos e de Putin, esquartejando a gordura da ratazana paulistana, sugando seu tutano para refazer suas energias enquanto ele se esvai olhando a cena como se fosse um homem triunfante e livrepensante. A cena é perturbadora, sei bem. Mas podemos percebê-la, talvez, como uma contraperturbação que nos ajuda a abandonar a moldura convencional que lê esse episódio como uma questão de erotismo e de moralidade.
Não é disso que se trata. Trata-se de política, de comércio global, de guerra. Se continuarmos afirmando que o absurdo foi perpetrado por um homem fascista, “de direita” que em nada se parece conosco, não teremos entendido nada. Não se trata de promiscuidade ou desamor, nem sequer de coprofilia, necrofilia ou qualquer outra tara, preferência sexual ou perversão. Trata-se de política, de ambição de expansão colonial, de misoginia necropolítica brasileira. Trata-se das masculinidades constitutivas do mundo que habitamos e, mais especificamente, de como elas estão inscritas no projeto nacional brasileiro em curso.
Jota Mombaça, Denise Ferreira da Silva e outras, têm escrito sobre “fim do mundo” a partir de um lugar singular e potente onde vicejam as elaborações de Franz Fanon e Aimé Cesaire nos anos 1950, entre outros. E dizem: há, sim, um mundo que deve acabar, e é necessário lutar para que esse mundo acabe. A mesma coisa diz Indianare Siqueira. O mundo que habilita a existência dos áudios da Ucrânia, da nossa rede de esgoto religiosa e libidinal, que sustenta o namoro do Deputado e a morte das deusas. Esse mundo em que nascemos e que já tanto defendemos, é o mesmo que faz o céu cair. É o Mundo no qual nós, homens, valemos a pena de sermos vividos, de sermos ouvidos; de sermos votados, de sermos priorizados: valemos a pena. Esse Mundo é que coloca às deusas na linha de tiro dos maridos, dos soldados de caveira e tarântula, e as transforma em objetos do desejo de esquartejamento erótico; é o Mundo que empurra abutres escatológicos para Ucrânia e outras paragens de devastação.
“O Mundo precisa se transformar num puteiro”, disse Indianarae. O puteiro que Indianarae possivelmente tem em mente é o mesmo que conhecemos fazendo pesquisa e visitando amigas… Não é o puteiro da fantasia masculina e moralista, feito um palácio de celebração do patriarcado e do capitalismo, o templo erigido em torno do gozo dos homens. Nesse puteiro ao qual Indianarae nos convida, nós, homens, só valemos a pena se tivermos como pagar a conta e nos ajustarmos às regras, aos desejos e às necessidades do lugar e de quem nele habita. Nesse puteiro, o Bebê ratazana que fala para sua mãe não teria muito o que fazer ou que dizer. Exceto talvez, pagar e correr das gatas.
*José Miguel Nieto Olivar é antropológo, professor na Faculdade de Saúde Pública da USP.