Albertina de Oliveira Costa
editora convidada
Nas últimas décadas, ocorreram mudanças drásticas no estatuto social das mulheres. A partir da segunda metade do século 20, elas emergiram como uma das maiores forças coletivas do mundo contemporâneo. A entrada em massa das mulheres na força de trabalho do mundo industrial revolucionou os laços sociais tradicionais; o notável incremento da escolaridade feminina, a oferta de anticoncepcionais mais eficazes e o declínio da fecundidade propiciaram a emergência de mobilizações por mais autonomia e mais direitos, em parte bem sucedidas, alcançando mudanças no ordenamento jurídico que possibilitaram que as mulheres se desvencilhassem de inúmeras tutelas legais que as relegavam a um lugar de menoridade civil.
Mas, apesar das demandas atendidas, das inúmeras conquistas e das mobilizações vitoriosas, perduram enormes discrepâncias entre os direitos de homens e de mulheres.
Os avanços normativos, desde a criação da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW na sua sigla em inglês) em 1979, demonstraram ser mais formais que efetivos. Adicionalmente, a coerção física, central na estruturação desigual da relação entre os sexos, paira como ameaça permanente. A maior presença das mulheres no espaço público vem acompanhada por índices alarmantes de violência de gênero. E, apesar de, na virada do século, os direitos sexuais e reprodutivos terem sido reconhecidos como direitos humanos, a ofensiva conservadora contra a ideologia de gênero vem ganhando adesão crescente e corroendo conquistas.
Outro paradoxo é o fato de que, apesar de a visibilidade da presença feminina na vida social ter aumentado de modo exponencial, isso não resultou em ganhos na participação política e nem na ocupação de espaços nas instâncias de poder formal. Apesar de incentivos legais, a participação politica feminina em nível global conserva-se em níveis muito baixos (22%).
As conquistas no âmbito econômico também ficaram aquém do desejável. Se, por um lado, as mulheres demonstraram uma incrível força de organização, argumentação, negociação e poder de convencimento, o processo de rearticulação do sistema econômico mundial tornou problemática a efetivação da nova geração de direitos sociais consagrada nas conferências de Viena, do Cairo e de Pequim.
Os efeitos benéficos da incorporação das mulheres no mercado de trabalho para a redução das desigualdades entre homens e mulheres também parecem ter encontrado seu limite. Persistem desigualdades significativas na remuneração e no acesso a diferentes tipos de ocupação, bem como barreiras intransponíveis à promoção ao topo das carreiras profissionais. Sobretudo, resiste intocada uma divisão iníqua do trabalho doméstico entre os sexos que acarreta uma sobrecarga para as mulheres: equipamentos sociais precários e políticas sociais omissas relegam as práticas de cuidado ao âmbito familiar, onde elas são as principais responsáveis pelos afazeres da casa e pelo cuidado das crianças, dos doentes e dos idosos. E, embora as mulheres tenham ingressado no mundo público do trabalho, os homens continuam ausentes da esfera invisível do trabalho doméstico. Essa divisão desigual do trabalho doméstico e do cuidado, por sua vez, é um dos grandes entraves para a entrada e a permanência das mulheres no mercado de trabalho, assim como para a possibilidade de participarem ativamente da vida política.
Tendo em vista esse cenário de direitos desiguais, no qual se aprofundam desigualdades entre regiões e entre as mulheres de diferentes regiões, penalizando o Sul global, o presente número é inteiramente dedicado às mulheres e suas lutas na busca por direitos mais equitativos, às suas vitórias e derrotas: trajetória sinuosa que ora se aproxima, ora se afasta da conquista da igualdade de gênero. Cenário cambiante e multifacetado que torna difícil avaliar o caminho percorrido e o caminho que falta percorrer. Em seu conjunto, a SUR 24 primeiro número da revista a ser inteiramente escrito por mulheres procura fornecer uma visão abrangente, incluindo diagnósticos e argumentos sobre discriminações ostensivas sofridas pelas mulheres, bem como dar visibilidade às discriminações silenciadas.
O primeiro bloco de artigos trata de desigualdades de ordem econômica. Chiara Capraro (Itália) defende que a questão dos impostos é central para uma implementação plena dos direitos humanos, com grande impacto na justiça de gênero. Uma politica fiscal mais equânime favoreceria notadamente a correção de distorções decorrentes da economia de mercado, que recorre ao trabalho feminino não remunerado para reduzir a provisão pública de serviços. Já Pilar Arcidiácono (Argentina) trata do tema das políticas redistributivas examinando o caso do programa social argentino Subsídio Universal por Filho, com foco em uma iniciativa de litígio para reverter a exclusão das mães encarceradas que convivem com filhos menores de quatro anos do grupo de possíveis beneficiárias.
O trabalho não remunerado exercido pelas mulheres também é assunto de um sub-grupo de artigos que trata especificamente da questão do cuidado, e de como a divisão desigual desse tipo específico de ocupação impacta a vida das mulheres e impede a igualdade de gênero. Segundo Laura Pautassi (Argentina), a crise do cuidado que se tornou explosiva na América Latina na ultima década se deveu, por um lado, à transição demográfica e, por outro, ao esgotamento das estratégias familiares que responsabilizavam as mulheres pelo trabalho reprodutivo, evidenciando a ausência de políticas públicas e equipamentos sociais para o acolhimento das crianças pequenas, dos doentes e dos idosos. Ancorada no princípio do reconhecimento do cuidado como um direito humano, propõe uma agenda de políticas sociais com perspectiva de gênero. Já Maria Hermínia Gonzalvez (Espanha) examina a crise do cuidado sob o ângulo das migrações internacionais e mostra como as transformações das políticas de bem-estar social, no quadro da globalização capitalista, deixaram evidente o papel decisivo das mulheres que migram sós, sem família, nas cadeias globais de cuidado. Helena Hirata (Brasil/Japão), em sua pesquisa comparativa entre Brasil, França e Japão, chega a conclusão semelhante. Seu estudo mostra como, em diferentes configurações societais, os múltiplos atores do cuidado Estado, mercado, família e filantropia -combinam-se e atuam de maneira desigual e assimétrica e como a centralidade das mulheres nas mais diferentes modalidades de divisão sexual internacional do trabalho evidenciam claramente uma divisão racial e étnica do trabalho.
Num segundo bloco de artigos, são enfatizadas as mobilizações feministas com o objetivo de combater as desigualdades na participação política das mulheres.
Souad Eddouada (Marrocos) analisa os desafios que representa no Marrocos a implementação do Codigo de Família de 2004, que incorpora as demandas do movimento feminista a partir de uma abordagem secular, dissociada dos princípios do islã quanto à regulamentação das relações familiares, tais como casamento, divórcio e herança, e sugere uma abordagem alternativa da equidade de gênero, baseada em preceitos que antecedem a reforma.
Nayereh Tohidi (Irã) fornece um panorama histórico do movimento feminista no Irã a partir de 1905, iluminando as contradições do estatuto dos direitos das mulheres em um país que combina nível elevado de escolaridade e baixa fecundidade com participação reduzida na força de trabalho e no Parlamento, bem como um cerceamento de costumes baseado na lei islâmica da sharia. Frisa que, a despeito dos obstáculos, o movimento de mulheres permanece vivo e atuante.
Uma avaliação da implementação da lei de cotas que a maioria dos países latino-americanos sancionou para garantir uma ampliação da participação feminina mostra que a efetividade dos mecanismos variou em função de seu formato e do vínculo com o sistema eleitoral. Apesar de discretos avanços, permanecem sérios obstáculos à presença das mulheres na representação política. Lucía Martelotte (Argentina) postula que, na atual conjuntura, a reivindicação por cotas seja preterida em favor da demanda por paridade.
A contribuição do feminismo negro é salientada por Djamila Ribeiro (Brasil), que aponta desigualdades dentro do movimento feminista brasileiro, que teria dificuldades em reconhecer as mulheres negras como sujeitos políticos. Advoga a importância de pensar a interseccionalidade de classe, raça e gênero para a construção de um novo marco civilizatório.
A partir da experiência do 13º Fórum da AWID, realizado em setembro último em Salvador (Brasil), e de uma campanha lançada pela organização nas redes sociais, Semanur Karaman (Turquia) trata da questão da solidariedade transnacional entre mulheres. No artigo, a autora enfatiza que, para que a solidariedade cumpra seu objetivo de aperfeiçoar o feminismo por intermédio de um movimento de que reúna movimentos diversificados, ultrapassando barreiras econômicas, de gênero, raça e classe social, é necessário que as mulheres envolvidas estejam atentas à forma pela qual sua solidariedade é concretizada e ao contexto ao qual é dirigida.
Dois artigos versam sobre direitos reprodutivos. Segundo Diya Uberoi (Índia) e Beatriz Galli (Brasil), a regulamentação do recurso à objeção de consciência deveria ponderar os direitos dos provedores de serviços médicos de exercer suas convicções morais e religiosas e os direitos das mulheres à saúde. As autoras mapeiam as politicas de regulamentação da objeção de consciência na América Latina e enfatizam a importância de garantir normativamente os direitos fundamentais das mulheres. Já Sylvia Tamale (Uganda) elenca os obstáculos de ordem legal, religiosa e costumeira para o acesso à contracepção e a barreira intransponível que encontra a demanda pela legalização do aborto em Uganda, apesar de o país ter ratificado o Protocolo de Maputo em 2010.
Outro bloco reúne análises que dizem respeito a diferentes formas de violência de gênero. Nas últimas décadas, argumenta Natalia Gherardi (Argentina), consolidou-se no direito internacional uma normatização sólida para prevenção, sanção e erradicação da violência contra as mulheres (CEDAW 1979, Convenção de Belém do Pará 1994). No entanto, afirma, persistem níveis alarmantes de violência, e são inúmeros os desafios para a implementação das leis, bem como para seu monitoramento.
No Egito, a intensificação das ocorrências e do grau de violência dos casos assédio sexual durante protestos levou a mobilizações visando sua condenação e criminalização. Contudo, afirma Mariam Kirollos (Egito), se as manifestações de janeiro de 2011 na praça Tahir e a queda de Mubarak criaram expectativas otimistas nos ativistas de direitos humanos, que finalmente se concretizaram alguns anos depois, a lei permanece letra morta, e seu impacto na aceitação pública do assedio é praticamente nulo.
No Brasil, a lei Maria da Penha, considerada uma vitória exemplar por ter culminado uma campanha que foi o carro-chefe do movimento feminista e por ter contado em sua elaboração com um consórcio de organizações feministas, completa dez anos. Wania Pasinato (Brasil) faz um balanço de sua implementação, seus desafios e obstáculos e se detem na análise de projetos de lei polêmicos, com potencial de desfigurá-la.
Finalmente, Mariana Joffily (Brasil) tenta entender por que as violências sexuais perpetradas na vigência das ditaduras militares no Cone Sul não foram expostas na transição para a democracia e conclui que um espaço de resignificação para essa modalidade de crime somente pode se constituir décadas mais tarde, após uma série de conquistas sociais e jurídicas pela igualdade de gênero.
Cientes de que a conquista de direitos pelas mulheres só se faz graças ao envolvimento e engajamento das próprias mulheres, esta edição retrata as trajetórias de uma série de indivíduos que dedicam suas vidas a lutar contra a desigualdade e a fortalecer a luta feminista.
Entrevistas – Três destacadas feministas, a italiana Silvia Federici, a brasileira Sonia Correa e a boliviana Maria Galindo, sendo a última em parceria com a Revista DR, foram entrevistadas para esta edição.
Precursora do debate atual sobre a crise do cuidado, Silvia Federici (Itália) lembra etapas de sua trajetória intelectual e demonstra otimismo em relação às práticas das novas gerações de feministas. Militante incansável, Federici, que foi uma das primeiras a desencadear o debate sobre a centralidade do trabalho doméstico para subordinação das mulheres, quando, no início dos anos 1970, junto com Maria Rosa della Costa e Selma James, lançou o movimento de Salários para o Trabalho Doméstico, com a finalidade de tornar visível esse trabalho de reprodução necessário para o funcionamento do capitalismo.
Desempenhando a função de consciência crítica do presente número, Sonia Correa (Brasil), em contraposição ao uso da categoria mulher, preconiza a utilização da categoria gênero, que permite superar o modelo binário de sexos, descolando o feminismo do corpo da mulher. Coordenadora do Observatório de Políticas de Sexualidade, Correa adverte sobre o agravamento da restauração conservadora no nível global e encara de modo crítico o papel dos países emergentes no debate sobre direitos sexuais e reprodutivos.
Para a militante anarcofeminista Maria Galindo (Bolívia), fundadora do movimento Mujeres Creando na Bolívia, a prioridade deve estar na construção de um tecido social que permita a ação das mulheres como sujeitos políticos, assim como ações de politica concreta, tais como cooperativas de gestão coletiva de poupança. Numa posição oposta a Correa, critica o uso da categoria gênero, que considera parte da agenda neoliberal para enquadrar a luta das mulheres.
Perfis Este número traz ainda perfis de cinco jovens mulheres que dedicam sua vida a trazer melhores condições de vida a mulheres do Sul global: a militante curda Ayla Akat Ata; a jornalista chinesa Yiping Cai; a ativista egípcia Yara Sallam; a advogada sul-africana Sibongile Ndashe; e a historiadora sul-coreana Christine Ahn.
Panorama institucional Finalmente, com o objetivo de contribuir para o fortalecimento da luta das mulheres, trazemos ainda uma conversa com a consultora Ellen Sprenger (Países Baixos) sobre tendências internacionais no campo do financiamento a organizações de defesa dos direitos das mulheres, onde ela dá dicas sobre como mobilizar recursos e construir relações sólidas com financiadores.
Arte Esta edição é a primeira da história da revista a trazer uma ilustração na capa, feita pela artista plástica Catarina Bessell (Brasil) sobre uma imagem da greve de mulheres organizada na Polônia em outubro último em protesto ao enrijecimento da legislação sobre o aborto no país. A imagem é parte de uma série, feita especialmente para a SUR 24 e que inclui ainda ilustrações sobre imagens da greve de mulheres ocorrida na Argentina no mesmo mês, em resposta a um episódio particularmente brutal de violência contra a mulher ocorrido naquele país.
Agradecimentos
Maria A.C. Brant
Editora Executiva
Oliver Hudson
Editor de Operações
Em primeiro lugar, registramos nossos agradecimentos especiais a Albertina de Oliveira Costa, editora convidada para este número da SUR. Amiga e conselheira de longa data da Revista Sur, Albertina foi convidada a contribuir para esta edição por sua reconhecida trajetória como feminista e acadêmica dedicada ao tema da mulher, mas sua competência e dedicação superaram muito as nossas expectativas. Este número não teria sido possível sem ela.
Somos também extremamente gratos às seguintes pessoas que nos ajudaram nesta edição: Adriana Guimarães, Akemi Kamimura, Alana Moraes, Barney Whiteoak, Bruna Angotti, Carmen Hein de Campos, Celina Lagrutta, Courtney Crumpler, Daniel Lopes, Evandro Lisboa Freire, Fernando Campos Leza, Fernando Scire, Glenda Mezarobba, Hildete Pereira de Melo, Ione Koseki, Ivi Oliveira, Lena Lavinas, Jane do Carmo, Jaqueline Pitanguy, Josefina Cicconetti, Karen Lang, Kelly Komatsu Agopyan, Lia Zanotta Machado, Luis Felipe Miguel, Luiza Bodenmüller, Maité Llanos, Marcela Vieira, Maria Rosa Lombardi, Mariana Giorgetti Valente, Mariana Patrício, Murphy McMahon, Natália de Araújo Lima, Pedro Maia Soares, Renato Barreto, Sebastián Porrua Schiess, Sheila de Carvalho, Tatiana Roque, Vivian Calderoni e Yumi Garcia dos Santos. Gostaríamos de agradecer especialmente a Jessica Horn, nossa editora convidada para a África.
Não podemos deixar de mencionar as organizadoras do 13° Fórum da AWID, realizado em Salvador (Brasil) em setembro último, por abrir as portas para nós e facilitar o contato com as participantes. O evento nos deu ainda mais certeza da urgência e relevância do tema que escolhemos para esta edição. Agradecimentos são devidos ainda ao Bernard and Audre Rapoport Center for Human Rights and Justice, University of Texas, Austin, pela nossa parceria continuada, e à Revista DR, pela nova parceria.
Somos particularmente gratos, é claro, às autoras deste número, assim como à equipe editorial e ao Conselho Executivo da Revista. Em particular, damos as boas vindas a Maryuri Mora Grisales por seu ingresso na equipe. Tampouco podemos deixar de citar a equipe de Comunicação da Conectas Direitos Humanos por sua dedicação a esta edição, especialmente Laura Daudén. Como sempre, estamos muito agradecidos pelo apoio e pela orientação dados pelos diretores da Conectas Jessica Carvalho Morris, Juana Kweitel e Marcos Fuchs.
Finalmente, gostaríamos de fazer uma menção especial a Ana Cernov, que coordenou o programa Sul-Sul da Conectas durante a edição dos quatro últimos números da SUR e que deixou a organização na reta final deste número. Sentiremos imensa falta de sua competência e dedicação e, especialmente, de seu carinho para com sua equipe e todos os outros colegas da organização, mas temos certeza de que sua doçura e inteligência serão apreciadas e deixarão marcas onde quer que esteja.
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Esta edição da Revista SUR foi possível graças ao apoio da Fundação Ford, Open Society Foundations, Fundação Oak, Sigrid Rausing Trust e Agência Sueca de Cooperação Internacional (ou SIDA, na sua sigla inglês), bem como de alguns doadores anônimos.