O Brasil teve prova de como a polaridade político-ideológica extrapolou seus limites no Congresso Nacional.
No último dia 17 de abril, o Brasil acompanhou ao vivo pela TV e pela internet a votação dos ilustres deputados e deputadas sobre a admissibilidade do processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. Foi um espetáculo de horrores que produziu espanto em muita gente. Uma cena dantesca que revela a escala da ofensiva conservadora que hoje avassala a representatividade política, ameaçando a democracia e a laicidade.
No mesmo espaço do Congresso Nacional onde ocorreu esse episódio escandaloso e difícil de esquecer, desde o ano passado vêm sendo realizadas, na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, audiências públicas para discutir a SUG 15/2014, sugestão legislativa de iniciativa popular que recebeu mais de 20 mil assinaturas e que obrigou aquela Casa a debater o tema do direito ao aborto legal e seguro.
Nas quatro audiências já realizadas o debate contou com vozes favoráveis e contra o direito ao aborto, com especialistas expondo dados e interpretações.
Estiveram ali muitas mulheres, mas também vários homens da área da medicina, antropologia, demografia, sociologia, direito e filosofia. Vozes favoráveis defenderam a SUG sob diferentes ângulos e com base em argumentos da razoabilidade democrática o direito à autonomia sexual e reprodutiva das mulheres.
Em contraste, assim como ocorreu em muitas outras ocasiões em que o tema do aborto foi discutido nos últimos 20 anos, as vozes contrárias ao direito ao aborto legal e seguro fizeram recursos a uma retórica ofensiva, acusatória e até mesmo grotesca, inclusive contra as pessoas com quem compartilhavam a mesa de debate.
Nesta quinta-feira, 28 de abril, acontecerá a última audiência pública desse ciclo de discussões sobre a proposta de legalização do aborto até a 12a semana. Nós, defensoras e defensores dos direitos sexuais e reprodutivos sabemos, de antemão, que esse poderá ser apenas mais um capítulo, em menor escala, do mesmo circo de absurdos que se assistiu no dia 17 de abril e que causou perplexidade no país, e para além de nossas fronteiras.
O mais melancólico é constatar que nessa oportunidade, como em outros debates anteriores sobre o tema, o que vai estar em jogo é a saúde e a vida das mulheres, em sua maioria de baixa renda e com acesso precário a métodos contraceptivos ou a serviços de saúde e que são as primeiras e mais afetadas pelo açoite da lei penal que criminaliza o aborto no país desde 1940.
Num contexto complexo de retrocessos de direitos civis e sociais e de exposição das fragilidades democráticas do país há quem diga, talvez, que é secundário ou mesmo fútil prestar atenção num debate sobre aborto no Senado Federal. Eu mesma penso que não.
Primeiro pelo que está em jogo (a saúde, a vida e os direitos das mulheres). Mas também porque estou convencida de que foi em debates sobre aborto, sexualidade e gênero – considerados marginais e/ou desinteressantes por uma gama variada de atores e analistas políticos – que se gestou e ganhou músculos a onda regressiva que hoje ameaça a própria democracia.
Faço um convite às pessoas que se escandalizaram com as cenas da votação do impeachment para estarem de olhos bem abertos frente às telas da TV Senado no dia 28 pela manhã, para ouvir argumentos serenos, informados e razoáveis pela urgente descriminalização do aborto no Brasil.
Se não por outra razão, para poder espalhar a boa nova de que há quem se dispõe, por compromisso com a premissa inegociável da deliberação democrática de estar num espaço congressual claramente degradado, para argumentar em favor da igualdade, não discriminação e liberdade das mulheres.
*Pesquisadora da ABIA e Co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW)
Artigo publicado originalmente no Blog do Noblat
Foto: André Mantelli – Manifestação das mulheres contra o PL 5069, no Rio de Janeiro, outubro de 2015