Engendrando uma Revolução de Direitos
Texto de autoria de Siddhart Narrain publicado originalmente em inglês no site Kafila, em 16 de Abril de 2014.
O Supremo Tribunal Federal da Índia, no julgamento da Autoridade Nacional de Serviços Jurídicos (NALSA) finalizado hoje, reconheceu os direitos legais e constitucionais das pessoas transgêneras, incluindo os direitos da comunidade hijra como um ‘terceiro sexo’. Em julgamento de imensa amplitude e visibilidade, os juízes KS Radhakrishnan e A.K. Sikri trouxeram esperança e a promessa de cidadania para uma comunidade que tem estado amplamente fora do quadro legal.
A NALSA entrou com a petição em 2012. Em 2013, o assunto foi apresentado juntamente com uma petição da Sociedade Bem-Estar da Mulher Poojaya Mata Nasib Kaur Ji, uma organização que trabalha para as kinnars, uma comunidade de transgêneros. Laxmi Narayan Tripathi, um ativista dos direitos dos transgêneros bem conhecido de Mumbai, também interveio neste caso.
Neste artigo, vou apontar os destaques deste julgamento e por que ele vai entrar para a história como uma das maiores decisões de conquista de direitos na história do Tribunal. Não posso deixar de notar a ironia de o julgamento acontecer alguns meses depois do julgamento Koushal (dezembro de 2013), em que o Supremo Tribunal recriminalizou pessoas LGBT e manteve a constitucionalidade do artigo 377 do IPC. O Tribunal reconhece isso, mas deixa claro que, embora reconheça que a seção 377 é usada para perseguir e discriminar pessoas transgêneras, o atual julgamento não altera o de 2013, incidindo especificamente sobre o reconhecimento legal da comunidade transexual.
Baseando-se na definição dos Princípios de Yogyakarta, o tribunal torna clara a distinção entre identidade de gênero e orientação sexual. O tribunal se envolve com ambas as categorias, mas incide apenas sobre o assunto transgênero. A categoria transgênero é vista como uma categoria abrangente que inclui aqueles que se identificam como homem para mulher, mulher para homem, intersexual e transexual, bem como aqueles que se identificam como hijras, kothis, kinnars, aravanis/thirunangis, jogappas/jogta, shivshakthis e eunucos. Significativamente, o Tribunal diz que o termo transgênero inclui transexuais “pré-operatórios, pós-operatórios e não-operatórios” que se identificam fortemente com pessoas do sexo oposto. Assim, o acórdão do Tribunal não se limita a transexuais pós-operatórios. A Corte também destaca que limitar-se a esse ponto de vista é inaceitável.
Há duas questões centrais que o tribunal aborda. A primeira é o reconhecimento de uma terceira categoria de gênero para hijras ou identidades culturais equivalentes, a fim de facilitar os direitos legais. A segunda é que as pessoas transgêneras, para efeitos da lei, devem ser capazes de se identificar no gênero de sua preferência, que pode ser masculino, feminino ou uma terceira categoria de gênero. Na parte sobre as operações do acórdão, o Tribunal considerou que hijras e eunucos devem ser tratados como um “terceiro sexo” para salvaguardar os seus direitos fundamentais. O Tribunal considerou ainda que os transgêneros têm o direito de decidir seu gênero auto-identificado.
O Tribunal baseia-se em uma história recente de reconhecimento do governo central e estadual da categoria terceiro gênero em relação a benefícios do Estado de bem-estar social, a cartões nacionais de identificação eleitoral e a formulários de passaporte. Ao fazer isso e decidir que Estados e governo central comecem a se afastar de um sistema legal baseado puramente em uma lógica binária, a medida tem implicações revolucionárias para as leis atuais relacionados a casamento, adoção, herança, sucessão, legislações de bem-estar, como leis trabalhistas, etc, que se baseiam em uma classificação binária do gênero.
Especificamente em relação à cirurgia de transgenitalização, o Tribunal apoia-se em julgamentos pelo mundo para afastar o governo de uma avaliação biológica em direção a uma avaliação psicológica do gênero para fins legais. Na verdade, o tribunal decidiu que a insistência na cirurgia como uma pré-condição para o reconhecimento legal é imoral e ilegal. Isso irá facilitar o reconhecimento legal de todos aqueles que passam pela transgenitalização e esclarecerá qualquer área cinzenta existente na lei.
Do ponto de vista de desenvolvimento constitucional, o julgamento NALSA é pioneiro. Os tribunais contam com os artigos 14 (direito à igualdade), 15 e 16 (direito à não discriminação), 19 (direito à liberdade de opinião e de expressão), 21 (direito de viver com dignidade e direito à autonomia), artigo 51 (Princípio diretivo de Política de Estado (fomentando o respeito pelo direito internacional e obrigações de tratados) e as palavras Justiça social, econômica e política no Preâmbulo da Constituição.
O direito à igualdade no artigo 14 foi lido para aplicar a pessoas transgêneras, incluindo aquelas que se identificam como um terceiro gênero. O tribunal diz que o não reconhecimento da identidade nega a igual proteção da lei. Em um movimento que lembra a decisão da Alta Corte de Deli, no caso da Fundação Naz, o Tribunal lê o termo “sexo” nas cláusulas de não discriminação dos artigos 15 e 16 para incluir ‘identidade de gênero’ (Em Naz, o Supremo Tribunal tinha lido sexo para incluir a orientação sexual). O tribunal faz isso ao afirmar que a intenção por trás da formulação do termo “sexo” nestas seções era impedir a atitude direta ou indireta de tratar as pessoas de forma diferente, por não estarem em conformidade com as generalizações estereotipadas de gêneros binários.
O Tribunal considerou que a expressão “sexo” nos artigos 15 e 16 não se limita a pessoas do sexo masculino ou feminino, mas também inclui pessoas que não se consideram nem homem, nem mulher. A decisão do tribunal proíbe a discriminação contra pessoas trangêneras em espaços públicos, como hotéis, restaurantes públicos, estradas, lojas e locais de entretenimento público.
Com base nesta análise, o Tribunal instou os governos estaduais e central a tomarem medidas para tratar as pessoas transgêneras como um segmento social e educacionalmente marginalizado e, portanto, com direito a cotas em instituições educacionais e concursos públicos. A Corte também instou os governos estaduais e central a fornecerem acesso aos cuidados de saúde e a estabelecer banheiros públicos distintos. O tribunal observa que a negação de direitos a pessoas transgêneras é baseada na suposição de que a lei jurídica predominante deve focar a discriminação em razão do sexo (ou seja, se uma pessoa é anatomicamente homem ou mulher) ao invés de gênero (se uma pessoa tem qualidades que são masculinas ou femininas).
Uma das partes mais inovadoras do julgamento é a leitura do artigo 19 (1)a, ao incluir no direito à liberdade de expressão o direito de expressão do gênero auto-identificado. Nenhuma pessoa pode ser ordenada como se vestir, a não ser em relação às restrições previstas no artigo 19 (2) (que incluem ordem pública, decência e moralidade). Esta é uma jogada ousada e identifica a ligação entre identidade de gênero e vestimenta, palavras, ações e comportamento. Isso é especialmente importante no contexto da discriminação contra as pessoas transgêneras que desafiam as formas binárias aceitas de vestir e comportar-se.
Neste acórdão, o Tribunal baseia-se em uma longa fila de casos em que o direito à vida tem sido reconhecido em reivindicações de comunidades marginalizadas. O Tribunal salientou que o direito à vida inclui o direito de viver com dignidade e o direito ao desenvolvimento humano. O artigo 21, o tribunal diz, não só proporciona um direito negativo, mas também coloca uma obrigação positiva sobre o Estado para garantir que a comunidade transgênera seja capaz de viver uma vida com dignidade. Isso pode estar relacionado com o maior enquadramento do Tribunal em relação à justiça social, como o dharma vigente da Constituição. O Tribunal observa que, dando força para o direito à dignidade garantido pela Constituição, faz a ponte entre a lei e a vida, que é o objetivo principal da Constituição.
Um tema recorrente que atravessa o julgamento é a ideia de justiça. O juiz Sikri explica a ideia de justiça que rege a Constituição indiana como sendo influenciada pelo imperativo categórico kantiano, a noção de Rawls de justiça como equidade e a ideia de Amartya Sen da justiça distributiva.
Outro fio que sustenta o julgamento é que a Constituição tem de manter-se atrelada com o contexto de deslocamento de um modelo colonial para uma era pós-colonial. Transgêneros foram criminalizados pelos britânicos pela seção 377 IPC (1861) e uma emenda à Lei de crimes tribais (1871). A Seção 377 permanece no livro de estatutos, e Tribunal não lidou com isso. A Lei de crimes tribais foi revogada em 1951, mas há legislações estaduais modeladas a partir dela que permanecem em vigor no país até hoje. A Corte destaca as raízes indígenas da cultura hijra e a rica tradição indiana de mitologia e história, com referências a pessoas do terceiro gênero.
Em contraste com os juízes do caso Koushal, o julgamento atual baseia-se amplamente nos princípios internacionais de direitos humanos e do direito comparado. Eles citam extensivamente os Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional dos Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero (2006), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1950), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) de 1976, leis comparativas do Reino Unido, União Européia, Alemanha, Argentina, África do Sul, Estados Unidos, Hungria, Austrália, Malásia e Nova Zelândia.
O uso mais interessante do direito comparado é a referência do Tribunal para recentes decisões da Suprema Corte do Paquistão (Dr. Mohammad Aslam Khaki v Sr Superintendente da Polícia, Rawalpindi, 2011) e Nepal (Sunil Babu Pant & Ors v Governo Nepal, 2007): os tribunais desses dois países reconheceram uma terceira categoria de gênero na lei. Os juízes, neste caso, referem-se à presença histórica de um terceiro gênero no subcontinente. Essa referência apresenta a possibilidade de desenvolvimento de uma jurisprudência única do sul da Ásia sobre direitos transgêneros que podem contribuir para o atual quadro internacional dos direitos humanos.
Mais uma vez, em contraste com os juízes no caso Koushal, o Tribunal observou que o papel do Judiciário não é apenas decidir disputas, mas também defender o Estado de Direito e assegurar o acesso à justiça aos setores marginalizados da sociedade, que incluem claramente as pessoas transgêneras. A Corte diz: “A nossa Constituição, como o direito da sociedade, é um organismo vivo. Baseia-se em uma realidade factual e social que está em constante mudança. Às vezes, uma mudança na lei precede uma mudança social e destina-se mesmo para estimulá-la. … Quando discutimos sobre os direitos dos trânsgeneros no contexto constitucional, verificamos que, a fim de trazer uma mudança completa de paradigma, a lei tem de desempenhar um papel mais predominante “.
Momentos de mudança legal e constitucional que geram uma mudança completa de paradigma são muito poucos. Esse é um momento que precisa ser comemorado e aplaudido. Cabe agora ao Legislativo e a cidadania indiana em geral traduzir essas normas constitucionais em leis, políticas e regulamentações. Essa vitória significativa tem que estar de mãos dadas com a luta política renovada por direitos transgêneros. Se não, a revolução social que esse julgamento prenuncia continuará a ser um sonho gravado em papel ofício.