por Nana Soares
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024, os primeiros após a pandemia de Covid-19, foram massivamente propagandeados pelo país sede e pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) como sendo os jogos da igualdade de gênero. Isso porque o número de atletas mulheres iria se equiparar ao de homens, grande conquista em um evento que, em suas origens, sequer aceitava a participação feminina. A paridade não se confirmou, mas o gênero esteve no fulcro das imagens e debates dos jogos de Paris.
Sobre a paridade de gênero entre atletas, é importante registrar que a proporção de mulheres foi a maior já registrada na história dos jogos. No caso do Brasil, elas foram maioria na delegação e ganharam mais medalhas, inclusive todas as medalhas de ouro. Contudo, no cômputo final a participação masculina continuou superando a feminina – muito por conta de modalidades como o hipismo, pois várias de suas categorias não fazem distinção de gênero e nelas predominam homens. Além disso, como apontaram observadoras atentas, a paridade entre atletas nem de longe se refletia nas comissões técnicas, nas quais as mulheres não chegavam nem a 20% do total.
Porém já na cerimônia de abertura irromperam os sinais do que e quem estaria no centro das controversias olímpicas de 2024. A performance Festa dos Deuses, uma releitura do quadro seiscentista de Jan Harmensz van Bijlert, enfureceu a extrema-direita francesa, que chamou o número de “sacrilégio” e clamou pelo boicote aos Jogos. A performance – que incluía drag queens e vogue dance foi interpretada pelo campo ultra conservador como uma paródia d’A Santa Ceia.
Imane Khalif: alvo do extremismo antitrans
Alguns dias depois do furor da extrema-direita contra a “Festa dos Deuses”, a boxeadora argelina Imane Khalif entrou na mira da virulenta política antitrans dos dias atuais. A primeira adversária de Khalif, a italiana Angela Carini, deixou o ringue, depois da primeira contenda, alegando fortes dores no nariz. E declarou à imprensa que havia abandonado a luta para “preservar sua vida”, insinuando que havia uma brutal disparidade de força entre as boxistas. A declaração foi imediatamente associada ao fato que, em 2023, Khalif havia sido desqualificada em um teste de elegibilidade de gênero conduzido pela Associação Internacional de Boxe (IBA). Na sequência, proliferam nas redes sociais notícias falsas alegando que Khalif era uma mulher trans.
Deflagrou-se um furacão de desinformação, pânico moral e transfobia, capitaneado e endossado por celebridades do ecossistema antigênero, como Elon Musk e J.K Rowling, e vozes da ultradireita, como Javier Milei e Georgia Meloni. A primeira ministra italiana repetiu a tese de sua compatriota de que a luta devia ser invalidada pois não era uma “disputa entre iguais”. No Brasil, os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG) e Mario Frias (PL-SP) foram às redes para dizer que em Paris se havia normalizado a prática de “homem bater em mulher”.
A avalanche de desinformação e transfobia foi rápida, intensa e, como mostrou investigação do Volcánicas, altamente coordenada. Ou seja, não foi nem orgânica nem acidental. A escala do episódio foi de tal ordem que tanto a família de Imane Khelif quanto o Comitê Olímpico Internacional vieram a público defendê-la. O pai de Imane esteve nas telas repetidas vezes mostrando documentos da filha para “provar” que ela, que sempre havia competido em categorias femininas, “era mulher e sempre havia sido”. O COI por sua vez recorreu à terminologia da “guerra cultural” para interpretar o furor do episódio. Seus dirigentes reafirmaram que tanto Khelif e a boxeadora taiwanesa Lin Yu-ting – que, assim como Imane, também havia sido barrada no teste de gênero de 2023 – preenchem suas regras de elegibilidade. Além de condenar a maré de desinformação e a agressividade que marcou o episódio, o porta-voz do COI admitiu a possibilidade de adoção de uma nova norma geral para os critérios de gênero nos esportes olímpicos. Sem explicitar, contudo, a possível direção dessa nova revisão.
Enquanto o festival de transfobia tomava a cena principal, veio à tona a disputa de poder entre o COI e a Associação Internacional de Boxe (IBA), claramente contaminada por implicações geopolíticas. A IBA é coordenada por um técnico russo muito próximo a Putin, cujas posições antigênero são mais que conhecidas e, por outro lado, a Rússia foi o único país vetado das Olimpíadas de Paris por efeito das sanções europeias pós invasão da Ucrânia. COI e IBA romperam relações ainda nas Olimpíadas de Tóquio, e por isso o próprio COI organiza as competições olímpicas de boxe. As regras de elegibilidade da IBA – que reprovaram Khelif e Lin – diferem dos critérios do COI, e isso explica por que as duas atletas competiam em Paris. Quando o caso Khelif explodiu, registrou-se uma troca de acusações mútuas e tentativas de descredibilização entre as duas entidades.
Passada a tormenta, não há qualquer evidência que Imane Khalif seja trans ou intersex. Tudo que há é apenas a reprovação no teste da IBA, entidade cuja credibilidade internacional não é das melhores e cujos critérios de medição são obscuros. Essa “reprovação de gênero” bastante duvidosa disparou uma onda brutal de desinformação e extremismo antitrans de que um dos efeitos, foi sem dúvida, colocar holofotes sobre um problema antigo e cada vez mais explosivo: o policiamento de gênero nos esportes e a inclusão trans que compõe o cenário mais amplo das políticas e ofensivas antigênero em curso no mundo.
Essas tensões e discussões revolvem questões históricas relativas à presença das mulheres nos esportes, às definições de sexo, gênero e marcadores biológicos e também à interseção entre direitos humanos, gênero e identidade de gênero Como já alertava há muito tempo a bióloga feminista Anne-Fausto Sterling, a política do sexo/gênero está incrustada na trajetória dos esportes de elite. Hoje, nesse que sempre foi um campo de batalha, a ideologia antigênero ultra conservadora se imbrica com as posições feministas essencialistas que alegam estar defendendo o lugar das mulheres nos esportes quando propõem excluir sumariamente a participação de pessoas (e principalmente mulheres) trans.
Quando vieram à tona as evidências de que Khelif sempre havia competido entre mulheres, alguns veículos de imprensa e atores públicos se desculparam, outras vozes críticas calaram-se, talvez constrangidas, mas houve quem dobrasse a aposta na “guerra ao gênero” . O presidente da IBA, por exemplo, declarou que o que a entidade havia feito nada mais era que identificar “atletas que tentaram enganar seus colegas se passando por mulheres”. Mas outras vozes se fizeram ouvir sublinhando que as ofensivas antitrans e o policiamento de gênero nos esportes atingem todas as mulheres, inclusive as cis. Também foram reiterados os efeitos notadamente racistas dessa lógica de exclusão, já que em geral são mulheres não brancas ou não europeias as que têm sua identidade questionada.
Há ainda a questão atravessada, mas muito menos debatida, acerca da participação e exclusão das pessoas intersexo nos esportes de elite. Em artigo no The Conversation Brasil sobre o tema, o pesquisador brasileiro Eric Seger faz uma ponderação sobre esse tema que vale ser resgatada: “Questões trans e intersexo têm grandes diferenças, mas em relação ao preconceito e ódio à existência, são bem parecidas. (…) A segurança de todas as pessoas é o objetivo principal, almejado também no Guia publicado pelo COI. (Mas) até o momento, as únicas atletas que certamente tiveram sua segurança posta em risco foram as atletas intersexo e as atletas trans, devido ao rechaço às suas existências”.
Vale dizer que os casos de Imane Khalif e Lin Yu-ting tiveram um “final feliz”, pois ambas foram campeãs olímpicas em suas categorias, sendo amplamente acolhidas pelas outras medalhistas. A boxeadora taiwanesa foi nomeada embaixadora anti-bullying, e a argelina anunciou que vai processar alguns dos responsáveis pelo seu linchamento virtual. O debate sobre policiamento de gênero no esporte, no entanto, está longe de acabar. Poderá ficar adormecido até o próximo caso de grande repercussão, quando velhos tropos ressurgirão, possivelmente com novas roupagens. Para concluir essa seção, as Olimpíadas de Paris chegaram muito perto da “igualdade de gênero”, mas foram também os jogos em que as ofensivas contra o “gênero” atingiram um ponto de culminação. E isso não vai ser esquecido.
Pós escrito
Ainda que os ataques ao gênero, na pessoa de Imane Khelif, tenham estado no centro dos Jogos Olímpicos de Paris, há outros fatos interessantes a registrar. Por exemplo, Paris 2024 vai ficar na história como os jogos que contaram com o maior número de atletas assumidamente LGBT. Foram ao menos 193 em todas as delegações. Destes, ao menos 3 são atletas não-binários, incluindo Nikki Hiltz, velocista dos EUA, Kris Thomas, do rugby do mesmo país, e Quinn, do time de futebol do Canadá – e nenhuma dessas participações chegou perto de causar qualquer furor. Nas Paralimpíadas, ganhou destaque Valentina Petrillo, velocista trans italiana.
A edição também contou com uma significativa Delegação de Refugiados. Nesse âmbito, a boxeadora camaronesa lésbica Cindy Ngamba ganhou a primeira medalha desta delegação, um bronze na categoria 75kg. Cindy chegou ao Reino Unidos aos 11 anos e seu desempenho em Paris chamou atenção para a razão pela qual não pode voltar a seu país. Em Camarões, a homossexualidade é drasticamente criminalizada. Em constraste, a afegã Manizha Talash, também da Equipe Olímpica de Refugiados, foi desqualificada da competição de breaking por usar uma capa com as palavras “Mulheres Afegãs Livres” expressando indignação contra a ofensiva brutal do Talibã contra os direitos das mulheres. A Human Rights Watch protestou, alegando que a desqualificação de Talash fere o direito de livre expressão da atleta. Finalmente, o mesatenista brasileiro Luca Kumahara ganhou visibilidade como primeira pessoa trans comentarista dos jogos. Luca é ex-atleta olímpico pela seleção feminina de tênis de mesa e já contou sua história e refletiu sobre a participação de pessoas trans no esporte num podcast da Folha de S. Paulo.
Por fim, atletas mães e pais que se classificaram para as Olimpíadas tiveram, pela primeira vez, estruturas de cuidados para suas filhas e filhos. Em Paris, a vila olímpica contou com berçários para as crianças enquanto pai ou mãe competem. O espaço foi direcionado para bebês em fase de amamentação ou que ainda fazem uso de fraldas e só foi disponibilizado após reivindicação organizada de atletas. Apesar de críticas – por exemplo, sobre a ausência de profissionais de cuidado no espaço, esse é decididamente um avanço. Para saber mais leia a matéria do Nexo.
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Nota de rodapé
1 Em 2021, o COI deixou a cargo de cada federação esportiva decidir sobre a elegibilidade de pessoas trans em suas modalidades, levando a sequenciais mudanças de diretrizes. A primeira veio da FINA, que regula os esportes aquáticos, e que endureceu os critérios de participação, tendência seguida por quase todas as federações desde então.
Recomendações de leitura
Português
Atletas trans e intersexo não são “mulheres legítimas” para o mundo do esporte – Jornal da USP
Espanhol
Quién es Imane Khelif, la boxeadora olímpica a la que se presentó falsamente como trans – Página 12
La polémica forzada contra Imane Khelif o cómo envenenar con odio un acontecimiento planetario – El País
Inglês
The Right-Wing Campaign to Purge Women From Women’s Sports – The Intercept
The Transphobia Rocking Olympic Boxing Has a Kremlin Connection – Mother Jones
We Must Defend Imane Khelif – The Nation
The Trans Panic in Sports Is Nearly a Century Old – The Nation
International Olympic Committee Is Right to Stand against Sex Testing – Human Rights Watch