por José Eustáquio Diniz Alves*
publicado em Rev. bras. estud. popul. vol.36 São Paulo 2019 Epub Nov 04, 2019
RESUMO
O fim da Guerra Fria, o desmoronamento da União Soviética, a unificação alemã, a formação da União Europeia e a emergência econômica da China e da Índia abriram um momento de colaboração e esperança de progresso na ordem internacional, na última década do turbulento século XX. A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), ocorrida no Cairo, em 1994, se beneficiou deste clima global favorável e apresentou um Programa de Ação com uma visão otimista da tríplice relação entre população, desenvolvimento e natureza, prenunciando um mundo com avanços econômicos e sociais, com respeito ao meio ambiente e ampliação dos direitos humanos. Contudo, as múltiplas conquistas materiais e a melhora em diversos indicadores sociais ocorreram às custas do empobrecimento dos ecossistemas e do desequilíbrio climático do planeta. O sonho do desenvolvimento sustentável tem gerado pesadelos, principalmente entre as novas gerações, que estão ocupando as ruas para denunciar as promessas vazias e a crescente probabilidade de um apocalipse ecológico que se vislumbra no horizonte. São estas questões que serão tratadas nesta nota técnica, neste momento em que se realiza a cúpula CIPD25, de Nairóbi.
Palavras-chave: População e desenvolvimento sustentável; CIPD; Agenda 2030; Emergência climática
Introdução
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) ocorrida na cidade do Cairo, de 5 a 13 de setembro de 1994, completa 25 anos em 2019. A CIPD foi o maior evento de porte internacional sobre temas demográficos e mobilizou cerca de 11 mil participantes, de 179 países, aprovando um Programa de Ação (PoA) para um horizonte de 20 anos.
A Conferência do Cairo foi a primeira a incorporar a palavra desenvolvimento no título e teve como objetivo tratar os desafios e as inter-relações entre população e desenvolvimento. A CIPD não criou nenhum novo direito humano, mas buscou aplicar todos os direitos humanos, universalmente reconhecidos, aos diversos itens do programa de população, além de incorporar a ideia do desenvolvimento como um direito humano fundamental, universal e inalienável. Também incorporou a noção de sustentabilidade aprovada na Conferência sobre Meio Ambiente, a Rio-1992.
No 20º aniversário da Conferência do Cairo, em 2014, houve o processo de avaliação e revisão do Programa de Ação da CIPD. A 47° Sessão da Comissão sobre População e Desenvolvimento (CPD) da Organização das Nações Unidas (ONU), reunida em Nova York, entre 7 e 11 de abril de 2014, aprovou uma resolução intitulada “Avaliação do status da implementação do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento”, em que reafirmou o Programa de Ação da CIPD e adotou medidas para continuar executando o PoA. Entre 12 e 14 de novembro de 2019 será realizada a cúpula de alto nível CIPD25, em Nairóbi, Quênia, para avaliar e reafirmar os compromissos do Programa de Ação e tomar medidas para atingir os objetivos estabelecidos.
Por questão de espaço e de foco, esse texto está centrado na discussão sobre a relação entre população, desenvolvimento e meio ambiente. O objetivo é elaborar um balanço atualizado, sintético e crítico. Trata-se de um ponto de vista de quem sempre acompanhou e defendeu a importância e a relevância do Consenso do Cairo, mas que também reconhece as limitações das formulações e do monitoramento de todo este processo, especialmente diante do agravamento da crise climática e ambiental e das transformações econômicas, sociais, políticas ocorridas no mundo nestes últimos 25 anos.
Desenvolvimento como um direito humano
O debate sobre população e desenvolvimento econômico é antigo e remonta aos marcos fundamentais da demografia. Na Conferência Mundial de População de Bucareste, em 1974, diversos países do Terceiro Mundo lançaram a palavra de ordem “O desenvolvimento é o melhor contraceptivo”, com a concepção de que o avanço econômico seria uma forma de evitar o crescimento populacional exponencial e garantir a melhoria do padrão de vida dos habitantes de cada país e do mundo (ALVES; CORREA, 2003).
Foi na década seguinte que a concepção do “desenvolvimento como um direito humano” foi adotada pela Resolução n. 41/128, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986, quando foi aprovada a “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento”. A declaração reconhece o desenvolvimento como um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa incrementar permanentemente o bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no progresso e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes. O §1 do artigo 1º diz:
O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, para ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.
A Declaração também reconhece que o direito humano ao desenvolvimento implica a plena realização do direito dos povos à autodeterminação, no exercício do direito inalienável à soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos naturais e que a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento. Estes princípios foram referendados na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena, em 1993.
Portanto, a CIPD do Cairo seguiu as deliberações anteriores e acatou a ideia de que “O direito ao desenvolvimento é um direito universal e inalienável e faz parte integral dos direitos humanos fundamentais e a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento” (nações unidas, 1994, p. 42). Mas a Conferência do Cairo também acatou a ideia do desenvolvimento sustentável aprovado na Conferência do Rio de Janeiro, em 1992, como ficou claro logo no preâmbulo do relatório da CIPD:
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento acontece num momento decisivo na história da cooperação internacional. Com o crescente reconhecimento de população global, desenvolvimento e interdependência ambiental, nunca foi tão grande a oportunidade de adotar políticas adequadas de macroeconomia e socioeconômicas para promover o crescimento econômico sustentado no contexto de um desenvolvimento sustentável (NAÇÕES UNIDAS, 1994, p. 38, grifo nosso).
Dessa forma, o Programa de Ação da CIPD tem como um dos eixos principais a busca do “crescimento econômico sustentado, no contexto de um desenvolvimento sustentável”. Porém, estes dois objetivos não são fáceis de alcançar e suas concepções não estão isentas de críticas, como veremos separadamente a seguir.
Crescimento econômico sustentado
Desde o início da Revolução Industrial e Energética, o crescimento da produção e do consumo virou a utopia mais desejada e a riqueza das nações tornou-se a meta central para se alcançar a felicidade geral. A receita do crescimento econômico contínuo e sustentado virou uma fórmula mágica para a solução de todos os problemas sociais, já que a maioria dos economistas e políticos acredita que o aumento quantitativo da produção e do consumo é uma condição necessária para viabilizar o processo de erradicação da pobreza e facilitar o combate às desigualdades sociais. Um Produto Interno Bruto (PIB) em constante expansão viabilizaria recursos para reduzir a miséria e a privação das camadas pobres da população, proporcionando uma distribuição de renda, sem comprometer o montante apropriado pelas parcelas ricas da sociedade.
Ou seja, o crescimento dos fatores de produção (mão de obra, terra, capital, infraestrutura, educação, energia extrassomática, etc.) propiciaria o aumento dos salários, do lucro capitalista e das receitas do Estado, possibilitando uma solidariedade orgânica entre os agentes produtivos, o que garantiria a estabilidade e a paz social. Por meio da divisão do trabalho, do aprimoramento das forças produtivas, da expansão dos mercados e das vantagens comparativas do comércio internacional, as nações interagem entre si e o mundo todo ganharia com a maior eficiência e a maior produtividade do trabalho e dos fatores de produção.
De fato, esta “filosofia econômica” esteve por trás do enorme progresso no padrão de vida da humanidade nos últimos 250 anos, como mostram Rosling, Rosling e Ronnlund (2018), no livro Factfulness. A renda média mundial aumentou, a pobreza foi reduzida substancialmente, cresceu a posse de bens e serviços com diversificação da cesta de consumo, expandiu-se o acesso ao ensino, à saúde e à moradia, houve grande redução da mortalidade infantil e aumento da esperança de vida, dentre outras conquistas. Dessa forma, a bandeira de “crescimento econômico sustentado” da CIPD do Cairo nada mais seria do que a reafirmação de uma tendência que se generalizou desde o surgimento do capitalismo.
Porém, se o crescimento econômico trouxe muitos benefícios no passado, não quer dizer que trará os mesmos benefícios no futuro e nem é certo que ele possa se manter em ritmo contínuo e sustentado. Kenneth Boulding, no clássico ensaio “The economics of the coming spaceship Earth” (1966), descreve dois tipos de economia: “cowboy” e “astronauta”. O primeiro é caracterizado pela noção de recursos ilimitados, de modo que, se esgotarmos um lugar, podemos simplesmente encontrar outro e continuar explorando. Nesta visão, consumo e produção são sempre bons (quanto mais, melhor) e o sucesso é medido pela quantidade de rendimento dos fatores de produção. No entanto, a “economia cowboy” não é consistente com a realidade ambiental, pois não existe planeta B.
Como explicou Boulding, a Terra é uma “nave espacial” única, com limites tanto de extração de recursos quanto na absorção de rejeitos e poluição. Nesta economia, o rendimento global precisa ser minimizado em vez de maximizado. O autor mencionou de maneira irônica: “Acreditar que o crescimento econômico exponencial pode continuar infinitamente num mundo finito é coisa de louco ou de economista” (BOULDING, 1966, p. 5).
Indo além de Boulding, a crítica mais consistente ao crescimento econômico ilimitado veio do matemático e economista romeno Nicholas Georgescu-Roegen, que, em 1971, escreveu o livro The entropy law and the economic process, pretendendo mudar o paradigma da análise econômica, com o objetivo de mostrar que o desenvolvimento deveria ser analisado à luz da termodinâmica. Ele usa o conceito de entropia para apontar que qualquer sistema fechado termodinâmico aumenta cada vez mais o seu grau de desordem (a entropia), não havendo possibilidade de um crescimento contínuo e sustentado.
A partir de uma determinada escala da economia, os ciclos naturais não podem produzir recursos ou absorver resíduos de forma renovável e sustentável. Este tipo de análise deu origem à economia ecológica, que é um campo de estudo transdisciplinar que enxerga a economia como um subsistema de um ecossistema global maior e finito. Herman Daly (2005) considera que crescimento econômico, especialmente depois da Segunda Guerra, mudou a correlação de forças no planeta, aumentando a proporção da presença humana (planeta cheio) e diminuindo a proporção das demais espécies e da biocapacidade (planeta vazio). Ele mostra que o crescimento econômico está ficando deseconômico e a natureza degradada já não fornece tantos serviços ecossistêmicos.
Como mostrou Martinez-Alier (1999), os economistas ecológicos questionam a sustentabilidade da economia pelos seus impactos ambientais e seus requisitos materiais e energéticos, bem como pela expansão demográfica. Portanto, a escola da economia ecológica já apresentava restrições ao lema do crescimento sustentado, muito antes da aprovação do “consenso” da CIPD do Cairo.
Desenvolvimento (in)sustentável
A definição mais difundida do desenvolvimento sustentável é aquela estabelecida no documento Nosso Futuro Comum, de 1987, conhecido como relatório Brundtland, que diz: “O desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades” (WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT, 1987, p. 41). A CIPD incorporou esta noção.
Portanto, para que haja sustentabilidade ambiental, o desenvolvimento não pode degradar as condições ambientais e o equilíbrio climático que são a base ecológica para a continuidade da geração de riqueza ao longo do tempo, para as atuais e as futuras gerações.
Contudo, não é isso que vem ocorrendo no mundo. Todos os avanços civilizatórios e o progresso humano, relatados por Rosling, Rosling e Ronnlund (2018), foram realizados às custas do empobrecimento do meio ambiente. Existem muitos indicadores que mostram a marcha insustentável do crescimento demoeconômico mundial e apontam para a ultrapassagem dos limites da resiliência do planeta.
A Global Footprint Network (2019) fornece uma metodologia para avaliar a sustentabilidade ambiental. A Pegada Ecológica considera a demanda humana por recursos naturais, contabilizando o tamanho das áreas produtivas de terra e mar necessário para gerar produtos, bens e serviços utilizados pelos seres humanos. A biocapacidade avalia o montante de terras e águas para prover os bens e serviços, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza.
O mundo tinha superávit ambiental em 1961, com uma biocapacidade global de 9,6 bilhões de hectares globais (gha) e uma pegada ecológica global de 7,1 bilhões de gha. Em 1970 houve empate e, a partir de 1971, a pegada ecológica global passou a superar crescentemente a biocapacidade global. Em 2016, o déficit ambiental do mundo era de 70%, pois havia uma pegada ecológica global de 20,5 bilhões de gha para um biocapacidade global de 12,2 bilhões de gha. Ou seja, as atividades antrópicas da humanidade já consumiam 1,7 planeta em 2016, mostrando a insustentabilidade do modelo de produção e consumo mundial, que já era ecologicamente deficitário desde 1971, mas que amplia o déficit a cada novo dia.
A metodologia das fronteiras planetárias – que define um espaço operacional seguro para a humanidade com base nos processos biofísicos intrínsecos que regulam a estabilidade do Sistema Terra – também confirma a insustentabilidade do modelo hegemônico de desenvolvimento. Estudo publicado na revista Science (STEFFEN et al. 2015) mostrou que quatro das nove fronteiras pesquisadas já foram ultrapassadas: mudanças climáticas; perda da biodiversidade; mudança no uso da terra; e fluxos biogeoquímicos (fósforo e nitrogênio). Duas delas – a mudança climática e a perda de biodiversidade – são o que os autores chamam de “limites fundamentais” e têm o potencial para conduzir a vida no Sistema Terra ao colapso.
De fato, as evidências são inequívocas. O crescimento das áreas ecúmenas e a degradação dos ecossistemas estão provocando a 6ª extinção em massa das espécies (KOLBERT, 2015). O relatório Planeta vivo – 2018, divulgado pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF, 2018), mostra que o avanço da produção e consumo da humanidade tem gerado uma aniquilação da vida selvagem, pois as populações de vertebrados silvestres, como mamíferos, pássaros, peixes, répteis e anfíbios, sofreram uma redução de 60% entre 1970 e 2014. A Plataforma Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, 2019), da ONU, confirma que há 1 milhão de espécies ameaçadas de extinção. O holocausto biológico representa um ecocídio de grande proporção, que pode reverberar na forma de um suicídio para a espécie humana.
Tudo isso é agravado pelo aquecimento global, que constitui a maior ameaça à vida na Terra. As crescentes emissões de gases de efeito estufa provocadas pela queima de combustíveis fósseis, pelo desmatamento e difusão de queimadas e pelo avanço da agricultura e da pecuária fizeram a concentração de CO2 – que estava abaixo de 280 partes por milhão (ppm) durante a maior parte do Holoceno – ultrapassar a barreira de 400 ppm em 2015 e chegar a 414,6 ppm em maio de 2019. Quanto maior a concentração de gases de efeito estufa, maior é a temperatura média do planeta.
Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de outubro de 2018, reforça a meta proposta no Acordo de Paris e considera que uma temperatura global acima de 1,5 ºC, em relação ao período pré-industrial, poderá ter efeitos catastróficos para os ecossistemas, a biodiversidade, a produção de alimentos e para o modo de vida rural e urbano de toda a população mundial. Manter o aumento da temperatura global abaixo de 1,5 ºC reduziria significativamente o risco de eventos climáticos extremos e severos, particularmente ondas de calor e as mortalidades decorrentes, diminuiria a escassez de água potável, evitaria a elevação do nível do mar a patamares catastróficos, impediria o naufrágio do delta dos rios, diminuiria o processo de acidificação dos oceanos e o branqueamento dos recifes de corais, etc.
Segundo o IPCC, o mundo teria apenas 12 anos para evitar um colapso ecológico, pois para que a meta de 1,5 ºC não seja ultrapassada, as emissões de gases de efeito estufa teriam que ser reduzidas em cerca de 45% até 2030, chegando a zero por volta de 2050. Para aumentar o sentido de urgência, há pesquisadores que consideram que o lapso de tempo necessário para reverter o quadro do aquecimento global é ainda mais estreito. Para Figueres et al. (2017), o tempo para evitar uma catástrofe climática é ainda mais curto, no máximo três anos, isto é, 2020.
Diante do agravamento das condições ambientais, o secretário-geral da ONU, António Guterres, convocou a Cúpula da Ação Climática, ocorrida em Nova York, entre 21 e 23 de setembro de 2019. A ONU – juntamente com o Grupo Consultivo de Ciência da Cúpula de Ação Climática – também preparou um relatório síntese (United in Science, 2019), com os mais recentes dados críticos e descobertas científicas sobre a crise climática. O relatório mostrou que, mesmo no caso do cumprimento das metas (NDCs) do Acordo de Paris, a temperatura poderá aumentar entre 2,9 e 3,4 ºC até 2100 e, se as tendências atuais de CO2 e outras emissões de gases de efeito estufa continuarem na próxima década, a temperatura global média da Terra pode aquecer até 5 ºC acima daquela do período pré-industrial, o que provocaria um apocalipse ecológico. Porém, a Cúpula de Nova York não representou nenhuma ação climática significativa, pois, embora mais de 70 países compactuaram com o objetivo de se tornarem neutros em termos de clima até 2050, os maiores poluidores (China, EUA, Índia, etc.) não se comprometeram com as emissões líquidas zero e não apresentaram nada de novo.
Portanto, a utopia do desenvolvimento sustentável permanece um sonho distante da realidade e, pior, está se transformando em pesadelo e pode desaguar em distopia. Este tipo de avaliação deveria estar presente na cúpula de alto nível CIPD25 de Nairóbi, em 2019.
A Agenda 2030 da ONU
A meta do “crescimento econômico sustentado no contexto de um desenvolvimento sustentável”, da CIPD do Cairo, foi retomada e atualizada na Agenda 2030. Nos 70 anos da ONU, em 2015, o secretário-geral Ban Ki-moon divulgou o relatório O caminho para a dignidade até 2030: acabando com a pobreza, transformando todas as vidas e protegendo o planeta. Na divulgação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), ele afirmou que nunca houve uma consulta tão ampla e profunda sobre o desenvolvimento sustentável.
Mas, evidentemente, a ONU não ouviu os estudiosos que questionam a possibilidade de um crescimento econômico infinito em um planeta finito e muito menos aqueles que defendem a ideia do decrescimento (ALVES, 2014). O ODS número 8 – “Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, e trabalho decente para todos” – renova o compromisso com o aumento da produção global de bens e serviços e, no objetivo # 8.1, estabelece uma meta bastante ambiciosa: “Sustentar o crescimento econômico per capita, de acordo com as circunstâncias nacionais e, em particular, pelo menos um crescimento anual de 7% do PIB nos países menos desenvolvidos”.
Evidentemente, esta meta de crescimento do PIB em 7% ao ano não tem se confirmado. Segundo o FMI, na década 2011-2020, o crescimento econômico médio tem ficado abaixo de 2% ao ano na América Latina e Caribe e inferior a 4% na África Subsaariana. Como alertou o economista Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, o mundo caminha para um período de baixo crescimento, caracterizado por uma “estagnação secular” (SUMMERS, 2015).
Da mesma forma, o ODS número 2 – “Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição, e promover a agricultura sustentável” – está cada vez mais difícil de ser alcançado. Segundo a FAO (2019), o número de pessoas em todo o mundo que não tiveram acesso suficiente a alimentos, em 2005, foi de 947,2 milhões (representando 14,5% do total populacional), diminuindo para 785,4 milhões (10,6%) em 2015, mas voltou a subir nos três anos seguintes, chegando a 821,6 milhões de pessoas (10,8% do total) em 2018.
O relatório Climate change and land, do IPCC, de agosto de 2019, mostra, de forma inquestionável, que o crescimento da população mundial e o aumento do consumo per capita de alimentos (ração, fibra, madeira e energia) têm causado taxas sem precedentes de uso de terra e água doce. O aumento da produção e do consumo de alimentos contribuiu para a elevação das emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE), perda de ecossistemas naturais e diminuição da biodiversidade. O sistema alimentar responde por cerca de 30% de todas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e 80% do desmatamento global. O relatório do IPCC adverte que a demanda global por solo e água já acontece de forma insustentável e o acréscimo de mais 3 bilhões de pessoas até o fim do século vai trazer desafios ainda maiores.
O ODS número 12 – “Assegurar padrões de consumo e produção sustentáveis” – está indo na contramão, pois não está havendo desacoplamento entre a produção e o uso de recursos naturais. O relatório Resource efficiency: potential and economic implications (UNEP, 2017) mostra que, mantidas as tendências recentes, a população mundial deverá crescer 28%, com a utilização de 71% mais recursos per capita até 2050. Sem medidas urgentes para aumentar a eficiência, o uso global de metais, biomassa e minerais aumentará de 85 para 186 bilhões de toneladas por ano até 2050. Sem dúvida, o ritmo e o volume de exploração do meio ambiente não são sustentáveis.
Também o ODS número 14 – “Conservar e promover o uso sustentável dos oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável” – está longe do caminho correto. O IPCC divulgou, em setembro de 2019, um novo relatório que mostra a gravidade da situação climática, dos oceanos e da criosfera. A taxa de aquecimento dos oceanos dobrou, desde o início dos anos 1990, e as ondas de calor marinhas estão se tornando mais frequentes. E, à medida que absorvem o CO2, os oceanos se tornam mais ácidos, o que ameaça a sobrevivência dos recifes de coral e a vida marinha, devendo provocar maior insegurança alimentar. O relatório mostra que o aquecimento global já atingiu 1,1 ºC acima do nível pré-industrial, os oceanos estão mais quentes, mais poluídos, mais ácidos e menos produtivos, enquanto as geleiras e glaciares, em derretimento, aceleram o aumento do nível do mar e ameaçam o dia a dia de cerca de 2 bilhões de pessoas que vivem nas áreas costeiras.
Portanto, a economia mundial não tem seguido os ditames do desenvolvimento sustentável e está longe de colocar em prática os preceitos da CIPD do Cairo e da Agenda 2030 da ONU. O direito ao desenvolvimento, no contexto da soberania nacional, tem sido usado pelos defensores do nacionalismo e do desenvolvimentismo para, por exemplo, justificar a destruição da Amazônia. Na verdade, como mostram Martine e Alves (2015), o desenvolvimento sustentável tem se tornado um oximoro e o tripé da sustentabilidade – econômico, social e ambiental – tem se tornado um trilema.
Terra inabitável e a emergência da juventude contra a emergência climática
A ONU produziu muito material interessante nos últimos 30 anos. Mas, em vez de ações, as palavras bonitas servem mais para obnubilar o fato de que o padrão de produção e consumo da humanidade continua destruindo as bases da vida no planeta e que a crise ambiental está se agravando e se acelerando.
O jornalista David Wallace-Wells escreveu vários artigos sobre a possibilidade de uma catástrofe ambiental que foram agregados no livro The uninhabitable Earth: life after warming (2019). O livro começa com a frase: “É pior, muito pior do que você pensa”. Ele mostra que o aquecimento global vai ser abrangente, terá um impacto muito rápido e vai durar muito tempo. Isso quer dizer que os efeitos danosos das mudanças climáticas vão se agravar com o tempo e, embora todas as gerações já estejam sendo atingidas, são as crianças e jovens que nasceram e vão nascer no século XXI que vão sentir as maiores consequências do colapso ambiental. A degradação ambiental vai ocorrer em várias áreas, com a acidificação dos solos, águas e oceanos, a precarização dos ecossistemas e os desastres climáticos extremos (secas, chuvas, furacões e inundações de grandes proporções), tornando muitos lugares da Terra bastante inóspitos ou inabitáveis.
Este relato jornalístico não está descolado dos principais achados científicos. Artigo publicado pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (STEFFEN, et al. 2018) alerta que, se o aquecimento global ultrapassar determinado limiar (algo em torno de 2 ºC), isso levaria, pelos efeitos de feedback (liberação de metano do permafrost, etc.), a uma temperatura muito mais alta do que qualquer interglacial nos últimos 1,2 milhão de anos e a níveis do mar significativamente mais altos do que em qualquer momento no Holoceno. O efeito é o que eles chamam de “Terra estufa”. Daí, a trajetória resultante, caso não seja evitada, causará sérias perturbações nos ecossistemas, na sociedade e nas economias.
Embora os danos da crise climática e da degradação dos ecossistemas já possam ser vistos e sentidos no dia a dia, os maiores custos acontecerão nas próximas décadas e vão impactar de forma desproporcional sobre as crianças e os jovens que nasceram no século XXI ou que ainda vão nascer nos tempos vindouros.
De modo geral, as Conferências Intergovernamentais da ONU ignoraram os limites do crescimento demoeconômico e, mesmo com boas intenções, na prática, se contentaram com a maquiagem verde (greenwashing) do adjetivo sustentável. O mundo está diante de um conflito intergeracional, pois as gerações mais velhas, agindo egoisticamente, buscam garantir o bem-estar material atual, mas às custas do empobrecimento do meio ambiente e da perda de qualidade do ciclo de vida das crianças e adolescentes que ainda não têm idade para votar e, principalmente, daquelas vidas que sequer nasceram e, portanto, nem possuem direitos estabelecidos na legislação atual.
Acontece que as novas gerações não querem receber passivamente a herança maldita de uma Terra inóspita e inabitável, como mostram os movimentos “Extinction Rebellion”, “BirthStrike” e “NoFutureNoChildren” (ALVES, 2019). Há 27 anos, a canadense Severn Cullis-Suzuki – “a menina que silenciou o mundo por cinco minutos” – emocionou os delegados e os chefes de Estado na Conferência do Meio Ambiente, Rio 92, cobrando soluções para os problemas ambientais. Diversas lideranças jovens de diferentes países também soltaram a voz nos últimos anos para protestar contra a insustentabilidade do modelo de desenvolvimento.
Mas foi a adolescente sueca Greta Thunberg que catalisou toda a indignação da juventude e conseguiu fazer a crítica mais consistente à falta de ação dos líderes mundiais e ao estado de desordem da governança global (MARTINE; ALVES, 2019). Na reunião anual do Fórum Econômico de Davos, ela disse para a elite do empresariado mundial: “Quero que vocês ajam como fariam em uma crise. Quero que vocês ajam como se nossa casa estivesse pegando fogo. Porque está” (THUNBERG, 25/01/2019). As novas gerações estão trazendo o futuro para o presente.
Foi com este senso de urgência que os jovens começaram a pressionar os dirigentes políticos a enfrentarem a emergência climática. Nos dias 20 e 27 de setembro de 2019, mais de 7 milhões de pessoas, em mais de 180 países, em mais de 6 mil cidades, saíram às ruas para protestar contra a crise climática e ambiental. A maior mobilização global da história teve como ponto de partida a greve de estudantes que não aceitam pagar o alto custo das externalidades negativas da economia internacional. As novas gerações têm muito a perder com a catástrofe ecológica provocada pelo crescimento exponencial das atividades antrópicas. Dessa forma, fica claro que são as lutas ambientais e geracionais – e não as lutas específicas e identitárias – que possuem o potencial transformador global do século XXI.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, convocou a Cúpula da Ação Climática para Nova York, entre 21 e 23 de setembro de 2019. A Cúpula poderia ser considerada insuficiente ou até mesmo fracassada, se não fosse pelo discurso da garota Greta Thunberg que lembrou a todos: “Se os líderes mundiais optarem pelo fracasso, minha geração nunca os perdoará”. Ela resumiu o estado atual das contradições globais com as seguintes palavras que servem de síntese para os impasses atuais do mundo:
Está tudo errado. Eu não deveria estar aqui. Eu deveria estar de volta à escola do outro lado do Atlântico. No entanto, todos vocês vêm a mim em busca de esperança? Como vocês se atrevem! Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias. E, no entanto, sou uma jovem sortuda. As pessoas estão sofrendo. Pessoas estão morrendo. Ecossistemas inteiros estão entrando em colapso. Estamos no início de uma extinção em massa. E tudo o que vocês podem falar é sobre dinheiro e sobre o conto de fadas do eterno crescimento econômico. Como vocês se atrevem! (THUNBERG, 23/09/2019).
Desta forma, a proposta da CIPD do Cairo de “Crescimento econômico sustentado no contexto de um desenvolvimento sustentável” parece estar superada pela gravidade e complexidade dos fatos e a Agenda 2030 da ONU parece ter seu prazo de validade antecipado diante da emergência climática e ambiental.
A grande novidade da contemporalidade é o movimento global da juventude que exige ações imediatas e não mais procrastinações e discursos demagógicos. A cúpula CIPD25, de Nairóbi, deveria evitar a insistente repetição do “conto de fadas do crescimento econômico”, deveria fazer autocrítica pelas metas não cumpridas (como a universalização dos serviços de saúde reprodutiva) e deveria adotar mais ações concretas e menos “palavras vazias”. O mundo caminha para um colapso ecológico e as novas gerações, assim como aquelas que ainda vão nascer, não vão perdoar a inação e a falta de foco da governança global.
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