Por Jaime Barrientos e Manuela Cárdenas[i]
O início do mês de outubro de 2019 no Chile nos fazia acreditar que vivíamos num paraíso. De fato, o presidente Sebastián Piñera até poucas semanas antes descrevia o país como um oásis em comparação com a conjuntura latino-americana. Tratava-se, na verdade, de vender uma vitrine para acionistas. Há quarenta anos o descontentamento, a raiva e o desencanto eram incubados devido à instalação forçada durante a ditadura de um modelo de produção e de consumo que se manteve mesmo após o fim do regime militar.
Contudo, no meio de outubro um grupo de jovens iniciou um conjunto de manifestações devido à alta do preço do metrô. O governo respondeu a essas manifestações usando a Força Policial para controlá-los. Paralelamente a essa faísca inicial, diferentes ministros emitiam opiniões sobre contingenciamento de gastos, muitas vezes se referindo ao custo de vida do Chile. Suas opiniões denotavam uma falta de conexão com a cidadania e mesmo uma afronta a muitas e muitos chilenos. As palavras desses ministros humilhavam a toda a população, mas sobretudo as pessoas que trabalharam duro por anos sem que lhes fosse permitido sair da pobreza.
Na sexta-feira, dia 18 de outubro, em resposta à convocatória popular para pular a catraca do metrô na capital do país, o governo decidiu fechar totalmente as linhas do transporte. Essa medida gerou assombro, caos urbano e também raiva em muitos chilenos. Dali em diante, os eventos se sucederam com rapidez. Protestos, saques aos estabelecimentos que representam o coração do modelo neoliberal chileno (bancos, supermercados, farmácias) e uma ofensiva contra o próprio metrô, incendiando e vandalizando as suas estações, aconteciam em Santiago.
Tudo isso ocorreu sem qualquer intervenção da força pública. A polícia deixou que os manifestantes atuassem com todo o tempo do mundo. Enquanto a capital começava a se manifestar contra a sua decisão de fechar o metrô, o presidente se dirigia ao aniversário de um membro de sua família. Algumas horas depois, Piñera decidia decretar estado de exceção: lançou os militares às ruas para tentar controlar a ordem pública e decretou o toque de recolher, assim como limitou as liberdades civis.
Ali começava uma série de semanas de mobilização permanente, cuja grande parte delas eram pacíficas contra a ordem do governo, como também contra o modelo neoliberal herdado da ditadura militar de Pinochet. Assim, podemos afirmar que essa é uma revolução social essencialmente contra o modelo neoliberal, que gerou profundos danos na vida social de muitos chilenos. No país, quase tudo é privado e de alto custo: saúde, educação, transporte, moradia. Viver no Chile custa o mesmo ou mais que do que em muitos países europeus, ainda que o salário mínimo seja baixo e a distribuição das riquezas seja muito desigual. Somente à título de exemplo: após ter trabalhado a sua vida inteira, uma pessoa recebe uma pensão miserável. Muitas pessoas postergam a idade da sua aposentadoria para não empobrecer ainda mais ou baixar radicalmente o seu padrão de vida. Enquanto isso, as entidades encarregadas de administrar os fundos de pensão exibem lucros enormes a cada ano. Milhares de profissionais se formam na universidade anualmente, mas não sem contrair altas dívidas com um banco privado a altas taxas de juros e recebendo salários que não lhes permitem viver e pagar ao mesmo tempo essas dívidas contraídas.
Muitas pessoas não entendem por que os jovens reagiram com tanta raiva, destruindo coisas e enfrentando a polícia, o que gerou uma resposta institucional feroz: repressão brutal, milhares de feridos, pessoas torturadas e com danos físicos e emocionais (mais de duzentas pessoas perderam um olho, fruto das munições utilizadas pelas forças especiais da polícia). No entanto, muitos jovens estiveram durante toda a sua vida fora do sistema. Foram permanentemente excluídos e violentados pela sociedade chilena e não tiveram qualquer possibilidade de acessar os supostos êxitos do modelo neoliberal chileno dos quais a oligarquia tanto exalta. Elas e eles têm sido “aqueles que sobram”, aqueles que a sociedade sabia que existiam, mas que faziam pouco caso de sua existência. São décadas de raiva alimentada pela injustiça das humilhações cotidianas e indignidades.
A resposta cidadã foi uma manifestação única na história do país, convocando quase um milhão e meio de pessoas às ruas. O governo, por sua vez, respondia cada vez com mais repressão, com a criminalização de manifestantes e com medidas que denotaram uma profunda e total desconexão com as demandas da população. Novamente pensaram que poderiam somente dar algumas migalhas. Desta vez, no entanto, foi diferente. O lugar principal de concentração para as manifestações foi batizado como a “praça da dignidade”.
Enquanto o descontentamento, a raiva e o estupor dos cidadãos aumentavam, a aprovação do presidente caía a menos de 10%. Os protestos se intensificaram e a maior parte das demonstrações de indignação se dirigiram aos símbolos mais visíveis do sistema: supermercados, empresas administradoras de fundos de pensão, delegacias, bancos e lojas de varejo, que foram saqueados e muitas vezes incendiados.
Passaram-se semanas e o governo foi incapaz de avançar numa saída à crise política. Mais de 80% da população concorda com as demandas populares que exigem, de um lado, a abertura de uma constituinte que as inclua e, de outro, a saída do atual presidente. A representação política foi posta em cheque e a luta se mantém e se intensifica. A classe política como um todo carece da confiança dos manifestantes e da população em geral sem que tenha conseguido oferecer respostas.
Como o país vai sair desta rebelião? É difícil de antecipar ou prever.
As mudanças se sucederam de forma vertiginosa. Na sexta-feira, dia 15 de outubro, chegou-se num acordo assinado por quase todas as forças políticas com representação no Congresso para uma nova Constituição e um plebiscito para decidir como construí-la. Para muitos, em particular o governo, esta proposta resolve uma parte importante das suas crises. Contudo, considerando parte das demandas populares, este é um passo importante, mas que não resolve a crise. Inclusive há aqueles que creem que se afundam com ela. Muitos e muitas desconfiam de como essa proposta será finalmente implementada e não a conferem a legitimidade já que não passou por um diálogo e negociação com a população que está mobilizada em agregações e assembleias populares.
Trata-se de uma convenção de representantes, enquanto que nas ruas se pede por uma democracia participativa. A proposta apresentada pelo governo impõe um quórum de dois terços para a aprovação de leis. Na prática, isso preserva o poder de veto detido pelas minorias conservadoras. Do mesmo modo, a proposta prevê que os representantes da convenção devem se eleger sob o mesmo sistema de listas eleitorais que favorece os conglomerados de partidos. A possibilidade de candidaturas independentes é muito limitada. Tampouco foram explicitados os mecanismos para promover a paridade de gênero (incluindo a diversidade sexual) e etária, ou mesmo uma forma de garantir a representação dos povos originários. Tampouco foi proposta a diminuição da idade legal para poder votar, o que seria crucial considerando que a rebelião foi iniciada por estudantes secundaristas. Seria injusto não incluí-los no processo de reconstrução política.
Além disso, o governo segue sem dar sinais de que realmente entenda a magnitude da crise e das demandas cidadãs. Está obstinado a defender, custe o que custar, o modelo econômico sem tocar em nada. Seguramente o governo não vai duvidar em seguir intensificando a repressão e aumentando a lista de violações de direitos humanos. Por outro lado, temos manifestações que parecem renovar a cada dia o seu otimismo e a vontade por transformação. Trata-se de gente humilhada por anos, que padeceu cotidianamente da violência de um dos sistemas mais desiguais e injustos do mundo, de comunidades que clamam por solidariedade e justiça social, por reconhecimento identitário e por uma vida digna. A consciência da população aumenta na medida em que mais e mais gente se envolve nos protestos, em agregações autoconvocadas, frente ao exemplo da coragem e valentia dos mais jovens de nós (em sua maioria estudantes secundaristas e periféricos). O futuro está sendo jogado a cada dia nas ruas. A partir dessa luta transversal, onde se irmanam demandas acumuladas pelos últimos anos, a semente de uma nova hegemonia poderia estar nascendo, um novo “nós” mais inclusivo e que se nutre da solidariedade gerada por marchar lado a lado, dia após dia.
Essa revolução sem dúvida vai gerar e já está gerando custos para a vida de muitas e muitos. Nas últimas semanas, muitos jovens LGBT foram violentados pela repressão policial. Essas violências foram descritas no relatório “Violencia a cuerpxes disidentes en Chile. El pre, durante y post estado de emergencia del gobierno de Sebastián Piñera”. E, segundo o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 93 pessoas foram vítimas de violência política sexual (40 mulheres e 16 meninas). Estão incluídos neste rol desde assédios de conteúdo sexual diverso até violações massivas por agentes do Estado.
Além disso, a direita mais dura e reacionária, que defendeu sem reservas uma agenda antigênero, está defendendo o modelo econômico e a forte repressão policial, que afetou também a população LGBT. José Antonio Kast representa essa direita e os seus valores e é um dos principais líderes dos movimentos antigênero no país. Paralelamente, a grande desconfiança no mundo da política tradicional contribui para a aparição de populismos que poderiam, caso consigam representação política ou ganhem alguma eleição, modificar drasticamente a agenda de direitos conquistados no país, assim como aconteceu no Brasil.
É certo que uma nova constituição tem como requisito que os compromissos internacionais em matéria de direitos humanos não sofram alteração. A sua hierarquia no âmbito interno pode, por sua vez, se ver alterada ou mesmo a forma com que são regulados no próprio texto constitucional, já que os vetos que o setor conservador pode impor devido ao quórum proposta por Piñera que nos referimos, poderia relegar os direitos das minorias, conquistados após longas lutas políticas na legislação ordinária, impedindo-as de adquirir caráter constitucional.
Portanto, devemos avaliar no futuro próximo como se sucedem os acontecimentos no país e os efeitos promovidos pelas mudanças sociais e políticas que vão sendo geradas e propostas. Mesmo que tenha havido muita dor, tristeza, raiva e ansiedade, também houve muita esperança e resistência. É certo que seguimos mobilizados e em rebeldia contra um modelo que consagra a injustiça social, destrói o meio ambiente e entende privilégios naquilo que deveria ser visto como direitos básicos. Esse país se rebela contra um sistema de exploração e contra relações sociais baseadas no abuso. Como se escuta nas ruas, a luta continua “até que a dignidade se torne um costume”.
[i] Jaime Barrientos, Faculdade de Psicologia, Universidade Alberto Hurtado, Chile.
Manuel Cárdenas, Escola de Psicologia, Universidade Valparaíso, Chile.