por Fábio Grotz
De um lado, a guerra contínua movida pelo governo é o que anima atos de fala e ações dos atores e atrizes engajados numa missão redentora para transformar e purificar o Brasil. De outro, o eleitorado, com exceção do núcleo fiel de apoiadores do atual presidente, parece cada vez mais descrente na revolução que pretende conduzir o país à glória e à salvação. O entusiasmo que costuma marcar o início de qualquer governo esvaiu-se, expressivamente, desde janeiro. É o que indica uma série de pesquisas de opinião pública. O Datafolha, um dos principais institutos de opinião pública, mostrou, em abril, que JMB é o presidente em primeiro mandato com pior avaliação nos três primeiros meses desde a primeira eleição direta pós-redemocratização, em 1989. Segundo a pesquisa, 30% da população considera o governo ruim ou péssimo, índice muito próximo aos que avaliam como ótimo/bom (32%) ou regular (33%). Pesquisa do Ibope também mensurou o derretimento de apoio da população: entre janeiro e março, a aprovação do governo caiu de 49% ótimo/bom para 31%. A confiança no presidente teve queda de 55% para 49%.
Por qualquer das medidas, o ânimo com gestões antecessoras era consideravelmente maior: Lula, no início de 2003, era aprovado por 43%, sendo mal avaliado por 10%. Dilma Rousseff, por sua vez, gozava de prestígio ainda maior, com 47% de aprovação e apenas 7% de reprovação no começo de 2011. Comparado aos governos dos anos 1990, JMB também perde: Fernando Collor era considerado bom/ótimo por 36% e ruim/péssimo por 19%. Fernando Henrique Cardoso, em 1995, era rejeitado por 16%, enquanto que 39% consideravam sua gestão boa/ótima.
Quando desagregados, os dados do Datafolha nos dizem que o governo é mal avaliado pela população de baixa renda e pelas mulheres. Entre as pessoas que ganham até 2 salários mínimos por mês, apenas 26% avaliam como ótima/boa a gestão, índice medido antes do impopular anúncio de interrupção da política de aumento real do salário mínimo iniciada nos anos 1990 (leia aqui).
Em contraste, à medida que a renda sobe a gestão JMB melhora sua avaliação. É de 43% entre quem ganha de 5 a 10 salários mensalmente e 47% entre aqueles com renda superior a 10 salários. Esse último dado foi interpretado por Angela Alonso como um sinal de que as elites econômicas nacionais continuavam identificadas com os planos ultraliberais almejados pelo governo. Nesse sentido, não é nada trivial que, no final de maio, tenham circulado os resultados de uma sondagem feita pela consultoria XP/IPESPE entre agentes do mercado financeiro que mostra queda contínua na avaliação do governo, pois o percentual de percentual de ótimo e bom caiu de 86% em janeiro, para 28% em abril e para 14% em maio. Já as notas ruim e péssimo, subiram de 1% em janeiro para 43% em maio.
Quanto desagregados por sexo/gênero, os índices de aprovação são maiores entre os homens, pois 38% consideram o governo bom ou ótimo/bom, 33% regular e 26% péssimo. Entre as mulheres, 33% reprovam a administração, 34% consideram regular e 28% a veem como ótima. Na distribuição por raça e religião, segundo a pesquisa do Ibope, entre os pretos/pardos, a gestão JMB viu seus índices de ótimo caírem de 45% em janeiro para 30% em março. O índice dos que avaliam ruim subiu de 11% para 24%. Entre os brancos, a avaliação positiva continua alta, embora tenha despencado de 55% para 42% no mesmo período, ao passo que consideram o governo ruim 24%, em contraste com os 10% contabilizados em janeiro. Já no eleitorado católico, o percentual dos que consideram o governo ótimo encolheu de 49% em janeiro para 33% em março, enquanto os que avaliam-no como ruim saltaram de 26% para 36%. Entre as pessoas que se declaram evangélicas, a popularidade, contudo, ainda se mantém alta, pois o governo tem 41% de avaliação ótima. Mas ainda assim esse índice caiu 14 pontos desde janeiro e, consistentemente com essa queda, se em janeiro apenas 6% desse grupo considerava o governo ruim, hoje esse percentual é de 18%. No caso das outras religiões, tratadas genericamente pela pesquisa, a avaliação ótima caiu de 36% para 29%, acompanhada pela subida da avaliação ruim de 20% para 35%.
O Datafolha avaliou ainda a percepção da população quanto às propostas prioritárias do governo: a reforma da previdência, o pacote anticrime elaborado pelo ministro Moro, o decreto que ampliou o acesso ao porte de armas, mas também a visão da população quanto à legislação vigente sobre aborto. Em relação à reforma da Previdência, o país está dividido: uma maioria simples rejeita o projeto (51%), 41% são favoráveis, 2% se dizem indiferentes e 7% não souberam responder, conforme outra sondagem do Datafolha.
A divergência com o governo também é sentida quando se avalia o projeto de combate à criminalidade do ministro Sergio Moro, cuja imagem tem, tal qual a de JMB, contornos mitológicos entre os setores que apoiam o governo. As propostas contra corrupção, crime organizado e crimes violentos são, em geral, rechaçadas pela população. Sobretudo, a grande maioria (72%) da sociedade pensa que não haveria mais segurança com as pessoas armadas para se defender, pauta que é decididamente prioritária para JMB, que já assinou dois decretos sobre a matéria.
A desaprovação em relação à posse de armas, flexibilizada pelo presidente em março, é ampla, com 64% de rejeição pela população. O mesmo repúdio foi identificado por pesquisa do Ibope divulgada em março com relação a flexibilização do porte de armas, pois 73% são contrários ao afrouxamento das regras atuais. A contrapelo dessa evidência, no início de maio, o governo editou novo decreto ampliando também o porte de armas, isto é, o direito de andar armado nos espaços públicos, inclusive em aviões, uma flexibilização que viola as regras internacionais de segurança aérea. Tanto o Ministério Público quanto o Congresso se manifestaram no sentido de sustar a medida.
A despeito do fosso que que se vislumbra entre percepção da população e as metas e medidas do governo, a adesão ao armamentismo como solução para o problema da segurança pública continua alta na base social original do bolsonarismo. A pesquisa sobre o pacote anticrime mostra que a ampliação do direito à posse de arma legalizada tem maior apoio entre homens (47%), pessoas de cor branca (44%), aquelas com nível superior (40%), além daquelas com renda mensal superior a 10 salários (40%).
Por outro lado, 81%, ou seja uma maioria substantiva de pessoas, ao contrário do que pregam várias vozes do governo, consideram que a polícia não deve ter liberdade para atirar em suspeitos, e 79% afirmam que policiais que matam em serviço devem ser investigados. O Datafolha mostrou ainda que 82% da população refutam a ideia de que alguém que atira em outra pessoa por estar emocionalmente alterado não deva ser punido. Essa é, na verdade, a proposta mais criticada do pacote Moro, especialmente pelo movimento feminista que há várias décadas contestou, com sucesso, a tese jurídica de que os assassinos de mulheres poderiam ser absolvidos quando o crime tivesse sido cometido em estado de intensa emoção.
O Datafolha também mediu, em dezembro de 2018, a percepção da população quanto ao direito ao aborto tal como definido nas normas existentes (estupro, risco de vida da mulher e gravidez de anencéfalo). Essa avaliação é fundamental frente a prioridade do governo, expressa inúmeras vezes pela ministra Damares no Brasil e no exterior, de aprovar uma emenda constitucional para proteger o direito à vida desde a concepção. Os resultados da pesquisa informam que mesmo depois da brutal ofensiva contra o aborto no processo eleitoral 56% da população acredita que a interrupção da gravidez deve ser permitida nessas circunstâncias, enquanto que 41% rejeitam a prática independente das motivações e circunstâncias. [1]
Um pouco depois que esses resultados foram publicados, o recém-empossado ministro da Educação, Abraham Weintraub, anunciou, inicialmente, cortes de 30% no orçamento de três universidades federais, vituperando contra “nudez” e “balbúrdia” e, mais tarde, estendeu a tesoura para todas as universidade federais. A medida, que teve repercussão internacional ampla, também suscitou uma reação política imediata na sociedade, pois duas semanas mais tarde protestos massivos tomaram conta do país para contestar e repudiar o ataque ao ensino superior. Novas mobilizações ocorreram em 30 de maio. Ou seja, a insatisfação chegou às ruas.
Não menos importante, desde dezembro de 2018, rondam o governo os fantasmas de uma investigação sobre as conexões de um dos filhos de JMB com o esquema criminoso das milícias que controlam vastas áreas do Rio de Janeiro. Tudo isso parece estar fazendo com que o apoio a JMB esteja gradualmente retornando aos níveis de agosto de 2018, quando sua candidatura começou, de fato, a crescer.
Também é relevante ressaltar que o governo não tem uma base parlamentar sólida e organizada, pois o PSL, partido de JMB, tomou forma no processo eleitoral. Isso significa que, no Congresso, o governo tem tido embates acirrados com o setor amorfo e adaptável do sistema político brasileiro que sobreviveu ao tsunami eleitoral de 2018 (o chamado Centrão). Essa queda de braço está retardando a prioridade máxima da gestão JMB-Guedes que é a reforma da Previdência e deixa o mercado nervoso (o que, possivelmente, explica os resultados da sondagem XP/IPESPE). Para responder à tomada das ruas em defesa da educação pública e superar os impasses congressuais, o bolsonarismo, incluído o próprio presidente através de seu Twitter, convocou marchas para, no dia 26 de maio, defender o governo e suas propostas. Essas manifestações não foram colossais – nem atingiram a dimensão dos protestos contra os cortes na educação. Contudo, foram uma demonstração de que JMB ainda conta com uma margem de apoio que não é desprezível.
Os números aqui compilados, além da oposição e da resistência que começam a tomar corpo na sociedade sugerem que a rota adiante não é exatamente fácil para o governo recém instalado. Nesse registro, é preciso também contabilizar o quadro de paralisia ou mesmo de recessão econômica que não dá sinais de melhora. Como observa Lena Lavinas em entrevista para o SPW, não há nenhuma garantia que a reforma da previdência, se aprovada, vá assegurar índices de crescimento de imediato.
Cabe, portanto, perguntar se estaria o governo em vias de perder apoio e mesmo sustentação política. Estariam o método do caos e a guerra permanente perdendo tração e gerando fraturas irreversíveis? Pode a crise econômica empurrar a governabilidade para um beco sem saída? Imprudente responder a tais questões, porque proceder a interpretações e projeções, na conjuntura atual, é como atirar em um alvo móvel.
Sobretudo porque nada sugere que a belicosidade e o modo caótico de governar serão abandonados pois, tal como analisado por Marcos Nobre e Vladimir Safatle, a guerra permanente e a cacofonia são o que dão a base de sustentação do governo e mantêm fieis entre 30% e 40% do eleitorado, que, se por um lado, não constitui maioria, por outro, demonstra fôlego e fidelidade canina para defender o governo, como se viu nas marchas de 26 de maio.
Mas também porque a impulsividade de JMB é, realmente, incontrolável. Na semana em que finalizávamos esse balanço, o presidente JMB, cuja família acumula multas em profusão, apresentou pessoalmente no Congresso projeto para ampliar de 20 para 40 o limite de pontos em multas necessários para cassar a carteira de habilitação para motoristas. O texto prevê ainda a eliminação de multa, que seria convertida em advertência, para os condutores que deixassem de usar cadeirinhas para transporte de crianças. Embora as medidas tenham sido amplamente criticadas por especialistas de trânsito, a presidência e seu entorno fizeram ouvidos moucos.
Nessa cena de balbúrdia e imprevisibilidade, é preciso lembrar que se o governo JMB não tem um partido sólido em que se apoiar, é caucionado (ou mesmo tutelado) pelos militares, que ocupam oito ministérios e uma centena de postos de alto nível. Nesse sentido, cabe chamar atenção para outro aspecto analisado pelo Datafolha por ocasião dos 100 dias: o apoio da sociedade às Forças Armadas. Os resultados mostram que, em meio à cacofonia e belicosidade, essas instituições gozam de um enorme prestígio, pois 45% da população confia muito nos militares, o que representa oito pontos acima dos 37% medidos em junho de 2018.
Finalmente, como para comprovar que os prognósticos são hoje no Brasil muito arriscados. Quando os últimos ajustes estavam sendo feitos nesse balanço, um novo tsunami veio se acrescentar à balbúrdia. Na noite do domingo, 9 de junho, o jornal The Intercept revelou o conteúdo de conversas privadas dos integrantes da Operação Lava-Jato, mostrando relações de cumplicidade e desenho compartilhados da estratégia de Sergio Moro – juiz que comandou parte dos inquéritos e condenou Lula a prisão antes até de se tornar ministro da Justiça do governo JMB — e membros do Ministério Público. A repercussão dessas revelações está se desdobrando nas mais diversas direções com impactos realmente imprevisíveis.
Notas
[1] Para verificar o impacto do processo eleitoral na percepção social, pesquisa do mesmo Datafolha feita em agosto de 2018, quando debateu-se a descriminalização do aborto em Audiência Pública do STF, mostra, por exemplo, que naquele momento 14% das pessoas ouvidas eram “favoráveis à permissão do aborto em qualquer situação”, percentual que baixou para 6% em dezembro.
Imagem: Natchez, 1985, por Jean-Michel Basquiat