Carla Rodrigues (UFRJ/Faperj)
Quase todos os dias é possível se referir ao governo de Jair Bolsonaro com a frase “agora passou dos limites”. Hoje, com a distribuição de bananas aos jornalistas na porta do Palácio do Planalto ( macacos?) e a presença de um humorista ( palhaço?) é só mais um desses dias em que o presidente confunde — de propósito ou não, pouco importa — , o real, o simbólico e o imaginário da política. No episódio mais recente, já era Carnaval, menos no calendário e mais no espírito, quando, na manhã de 19 de fevereiro, o general Heleno — que não é apenas mais um militar na entourage do presidente, mas uma de suas maiores estrelas, chefe do Gabinete de Segurança Institucional — disse: “Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se”. Tinha como interlocutores o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Dali em diante, a começar por uma postagem no Twitter justificando que a declaração refletia “apenas” a sua opinião e não era fruto de conversas com o presidente da República, houve dois momentos.
No primeiro momento, durante dois dias a fala de Heleno ficou estampada na primeira página das versões on-line de grandes jornais e ali parecia fadada a morrer. A naturalização e a banalização dos absurdos que partem de Brasília amortecem qualquer coisa e tem baixa capacidade de produzir reações fora do círculo previsível das repercussões oficiais. Aqui, meu texto poderia se desenvolver na direção do debate sobre o alarido das redes sociais e a capacidade bolsonarista de mobilizá-las contra e a favor. Mas escolhi tomar outro rumo, inspirada pelo que se deu no segundo momento, quando as redes sociais bolsonaristas foram atiçadas por dois vídeos.
A imprensa voltou a se mobilizar quando a jornalista Vera Magalhães denunciou, no Estadão, que a convocação de manifestações contra o Congresso havia sido disparada pelo próprio presidente da República e seu conhecido talento para jogar gasolina na fogueira. Já era terça-feira de Carnaval, dia 25, quase uma semana depois do general Heleno ter estado nas primeiras páginas do noticiário, enfim a indignação parecia se espalhar, dificilmente em igual proporção do poder dos robôs de disparar as estapafúrdias mensagens de “resgatar o Brasil”.
Na sequência, grandes jornais saíram em defesa das instituições democráticas, com seus editoriais tão laudatórios quanto em geral inúteis. Vou me ater a analisar um pequeno trecho do Estadão, cujos textos venho acompanhando desde a posse do presidente da República, em 1 de janeiro de 2018. Nesse pouco mais de um ano de governo, os editoriais do vetusto jornal paulista subiram de tom e adotaram uma retórica mais contundente, mesmo quando oferecem uma contraparte comedida. Na quinta-feira, 27 de fevereiro, o editorial dizia: “O menosprezo de Bolsonaro pelo Congresso — onde esteve por quase três décadas como deputado — foi reafirmado diversas vezes na campanha eleitoral e depois de sua posse como presidente. Em maio de 2019, distribuiu pelo WhatsApp um texto de teor golpista, segundo o qual o País é “ingovernável” sem os “conchavos” políticos, em alusão à necessidade de negociação com o Congresso, e que, sendo assim, “o presidente não serve para nada”. Na ocasião, Bolsonaro disse que contava “com a sociedade” para “juntos revertermos essa situação” — um óbvio apelo direto ao “povo” contra as instituições.”
Está neste curto trecho o que me interessa discutir. Como instituição, o Congresso Nacional é simbólico: guardião dos valores democráticos da nação, casa constitucional, mandatária da vontade popular. Mas não foi desse Congresso que o atual presidente fez parte nem é a ele provavelmente a que se dirige. Bolsonaro esteve três décadas em outro Congresso, aquele pelo qual nutre profundo desprezo porque sabe exatamente como funciona. O real do Congresso é formado por práticas eleitorais espúrias, balcão de negócios de interesses privados, legislador dos seus próprios privilégios. Foi do horror desse real do Congresso que Bolsonaro emergiu, depois de 30 anos fazendo parte do chamado baixo clero, o grupo de parlamentares assim classificado por estar ali submetido a negociar com o alto clero em troca de um favor aqui, uma emenda ali, uma verba de gabinete acolá.
A chamada grande imprensa conhece bem a diferença entre o Congresso simbólico, representante do equilíbrio democrático entre os três poderes, e o real do Congresso, de onde saíram, em 2016, todos aqueles votos a favor do impeachment da presidente Dilma Roussef em nome “da família”. Bolsonaro ali fez da tribuna o início do seu palanque à presidência, no trágico elogio ao torturador Brilhante Ustra. Foi só por conhecer tão bem o real do Congresso que ele soube encenar-se como oposição. O real do Congresso funciona nos subsolos de Brasília. Seus representantes agem pelos cantos, à sombra, não aparecem nos jornais, não se sabe seus nomes, partidos, estados que representam. Estão ali como ratos em busca de comida. Como um animal que emergiu do mesmo esgoto, o presidente sabe como fedem os subterrâneos do Legislativo. Bolsonaro menospreza o que ele mesmo representou por longos 30 anos, confirmando o abismo entre o Congresso simbólico e o real do Congresso.
(Neste contexto, merece registro a revelação do jornalista Guilherme Amado de que as imagens do café da manhã simplório da família Bolsonaro eram uma farsa, montagem cenográfica para fazê-lo parecer popular, simples, um homem do povo de hábitos matinais estranhos).
A imagem popularesca em nada se aproxima dos parlamentares capazes de encarnar o Congresso simbólico, aquele que, para exigir respeito, se apresenta pela estética clichê do poder: homens de terno e gravata, fala supostamente rebuscada, apressados entre uma reunião e outra, tudo entremeado por declarações muito bem arrumadas para as páginas dos jornais. Ambos — simbólico e real — estão amarrados por um nó ao qual eu poderia acrescentar o Congresso imaginário, que existe para nos fazer acreditar que vivemos numa democracia efetiva. Na prática, os valores democráticos que o Congresso deveria representar têm sido incapazes de se concretizar para uma imensa parcela de despossuídos, que todos os dias escutam bem de perto alguém dizer “foda-se”.