Atualmente, discute-se se existe ou não algo como uma cultura do estupro. Creio que é uma expressão válida pelos aspectos que vou tentar expor a seguir.
Por cultura do estupro quer-se expor o nosso modo de viver, que inclui formas de pensar e de agir, no qual o estupro foi naturalizado. Isso quer dizer que o estupro seria algo tão banal, tão corriqueiro, tão comum, que não nos preocuparíamos com ele.
Fato a ser considerado é que a sociedade que nesse momento está muito comovida, não se preocupa com o estupro de um modo geral.
Não se pode desconsiderar que no momento em que um caso de repercussão ganha a atenção da grande mídia ou das redes sociais, todos se manifestam “indignados”, inclusive aqueles que estão inseridos e incentivam a cultura do estupro.
No entanto, quando passa a comoção, a mesma sociedade como um todo vira a chave e volta a desconsiderar a existência de estupros.
No contexto da cultura do estupro, está em vigência uma mentalidade que não vê como muito problemático que um homem estupre uma mulher. O estupro não é considerado anormal.
Outro aspecto importante. Muitas vezes o próprio estuprador sequer consegue perceber que o seu ato é um estupro. Outras vezes não vê seu ato como um crime, mas como um estranho direito sobre uma mulher ou outra pessoa estuprável.
Admitir a própria existência da cultura do estupro é algo que fica fora de questão para muitos participantes da cultura do estupro que preferem desconsiderar a questão cultural, do hábito em torno do estupro.
O estupro sobre o qual estamos falando nos últimos dias, nos choca e nos comove porque esse caso tem a propriedade de servir de metáfora social: vivemos um estupro coletivo todos os dias. Fontes afirmam que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil. O estupro é literalmente coletivo. De um coletivo de homens, pois são homens demais estuprando mulheres e mais mulheres. Mas a jovem carioca viveu um estupro coletivo de uma só vez.
Um estupro é incomparável e pode ser aniquilador de uma subjetividade, de um corpo, de uma vida. Por isso falar que ele é um metáfora pode parecer grosseiro, mas em um nível o horror do estupro expressa muito outro horrores. Os horrores da própria cultura que é capaz de produzir subjetividades capazes desse crime.
Estupro físico e estupro simbólico: culpar a vítima
A maior parte das pessoas se sente confusa diante de estupros. Talvez por confusão, mais do que por maldade, acabem por especular sobre a vítima, que é desrespeitada na sua condição de vítima. Aquele hábito super comum de colocar a culpa na roupa, no comportamento, no modo de ser da vítima, aprofunda ainda mais a cultura do estupro. É como se a pessoa continuasse sendo estuprada, violentada pelos ataques verbais, depois de ter sido estuprada fisicamente. Como se, depois do estupro físico, a pessoa estuprada continuasse sendo estuprada simbolicamente.
Mas de que serve culpar a vítima?
Culpar a vítima é um ato de covardia que pode servir apenas para desculpar o agressor. Quem atribui qualquer parcela de responsabilidade à vítima pelo estupro continua no papel de agressor e reforça a cultura do estupro. Desse modo, as pessoas que condenam a vítima conseguem desculpar-se, de algum modo, a si mesmas. Não percebem que também se tornaram estupradoras elas mesmas, que fomentam a cultura do estupro.
Estupro em potencial
Uma comparação pode nos ajudar a entender a cultura do estupro que silencia e oculta os estupros. Assim como há um “fascismo em potencial” comum na sociedade autoritária, há um estupro em potencial que lhe é análogo.
Lembro do caso da deputada Maria do Rosário atacada por Jair Bolsonaro, também deputado. Ele praticou uma tipo de violência simbólica que configura um estupro em potencial. Ao dizer que ele não a estupraria porque ela não merecia, ele não falou apenas uma estupidez própria ao seu estilo. Ele a ameaçou com sua potência de estuprador.
Curioso é que esse mesmo deputado fez um projeto de lei para justificar a castração química de estupradores. Provavelmente, ele pensasse que sua lei não o atingiria, porque deve imaginar que não fez nada demais ao falar o que disse. Não deve imaginar que incentiva a cultura do estupro ao falar dessa maneira. A cultura do estupro é tão profunda que podemos tanto ser algozes inconscientes quanto ser algozes oportunistas, como fazem os fascistas.
As leis penais
Sempre que um grave problema social ganha os holofotes da mídia, políticos e outros oportunistas apresentam soluções mágicas e, não raro, autoritárias para esse problema. Políticos oportunistas rapidamente propõem aumento de penas, violências físicas, redução de direitos fundamentais, tratamentos draconianos para os estupradores.
É sabido que essas soluções não impedem novos estupros e que a eficácia das leis penais é meramente simbólica. Várias pesquisas apontam que a pena privativa de liberdade não serve à prevenção de novos delitos, muito pelo contrário, como demonstram os índices de reincidência.
De todos os estupros que ocorrem diariamente, segundo os dados do Sinan, calcula-se, de maneira otimista, que apenas 10% desses crimes são noticiados e chegam ao conhecimento da polícia. O estupro é um crime que se dá às escuras, envolto em vergonha e muito preconceito. Segundo os dados do Sinan, 24, 1% dos estupradores de crianças são os próprios pais ou padrastos e em 32,2% dos casos são amigos ou conhecidos da vítima.
Desses estupros noticiados, muitos não chegaram à condenação pela inoperância da investigação policial e, sobretudo, pelo machismo, que condiciona, em grande parte, a atuação da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Ou seja, se os dados do Sinan estiverem certos, mudanças na legislação penal não alcançariam mais do que 10% dos casos de estupro. Logo, a resposta fácil e oportunista não atende aqueles que desejam o fim ou, ao menos, a redução drástica dos casos de estupros na sociedade brasileira.
O crime de estupro já é severamente tratado na legislação brasileira. É um crime etiquetado de hediondo. As penas variam de seis anos, que é a pena mínima no caso de estupro, a 30 anos, pena máxima do caso do estupro resultar em morte.
Qualquer pessoa que conheça minimamente a realidade penitenciária brasileira vai concordar que as penas, mesmo a se considerar eventuais benefícios durante a execução, não são brandas. Sabemos que no código do cárcere o estupro é a pena vivida pelo estuprador.
Ora, deixar estuprar na cadeia, faz parte da cultura do estupro. Estuprar, evidentemente, não é um bom método para acabar com o estupro. Vejam o círculo vicioso em que estamos.
A cadeia altamente desejada no contexto de uma cultura que acredita na polícia e na punição, é a instituição que melhor representa a cultura do estupro. Uma cultura que não se responsabiliza pela educação, pela formação e pela melhoria das condições da vida em sociedade.
Nesse caso, em vez de matar alguém que estuprou uma mulher, deveríamos nos perguntar pela sociedade que estamos construindo na qual esse tipo de violência surge e é naturalizada.
A sociedade que estupra
É a sociedade patriarcal e machista que cria as condições para o estupro ao promover a masculinidade como um modo de ser sustentado na violência. Aqueles que vemos hoje no governo tomado à força pelo golpe que depôs uma presidente honesta, muitas vezes culpabilizada pelo golpe sofrido como são as mulheres estupradas por suas vestimentas, esses estupradores que vemos visitando os ministérios da educação, envergonham o gênero masculino. São o resultado de uma cultura que só pode produzir subjetividades aberrantes.
É nesse contexto que o oportunista presidente interino acaba com o ministério das mulheres e, para se capitalizar com o drama da jovem carioca, anuncia a criação de um departamento da polícia federal para investigar crimes contra as mulheres. A luta por uma sociedade sem o referencial machista de violência, luta levada adiante pelas feministas e pessoas que gostariam de ver direitos fundamentais assegurados, é usurpada pelo fascismo que tomou o governo e reduziu o estupro a uma mera questão policial, quando tudo faz saber que se trata de uma questão cultural e que, mais importante do que investir na repressão cega, é trabalhar para mudar as mentalidades corrompidas pela cultura do estupro.
Temos que prestar atenção nisso. Estamos em um momento de muito perigo para a democracia e é preciso ter muito cuidado. O estupro nos horroriza e o risco que corremos no meio desse horror é o de criticar o estupro e, ao mesmo tempo, produzir mais estupros ou outras violações aos direitos e garantias fundamentais.