Por Françoise Girard
Publicado originalmente em inglês na newsletter The Famous Feminist
Algo muito interessante e animador acaba de acontecer nos Estados Unidos, nas eleições de meio de mandato de novembro de 2022: o direito ao aborto conduziu os jovens – a geração Z (que contempla atualmente aqueles entre 18 e 29 anos) – às urnas. Será este o único assunto que preocupa os jovens? Não, não é. Mas uma sondagem de boca de urna, realizada pela ABC News no dia das eleições, mostrou que 44% dos eleitores dessa faixa etária apontaram o aborto como a principal preocupação – o dobro daqueles que indicaram a inflação em segundo lugar.
Como resultado, as eleições de 2022 registraram a participação de 27% entre jovens de 18-29 anos de idade, ficando atrás apenas do recorde de 31% de comparecimento da votação de 2018. Percentual que contrasta com a taxa de participação média de 20% de jovens nos anos 2000 e 2010. Em vários estados decisivos (Florida, Georgia, Mississippi, Carolina do Norte, New Hampshire, Nevada, Ohio, Pensilvânia e Wisconsin), a participação de jovens atingiu 31%. E, porque 63% dos eleitores da geração Z escolheram o Partido Democrata, com 89% da juventude negra e 68% da juventude latina preferindo um democrata para a Câmara dos Deputados, esta elevada participação ajudou a bloquear a “onda vermelha” (Republicana) que muitos tinham esperado.
Claramente, os jovens, e especialmente as mulheres jovens, não apreciaram a decisão da Suprema Corte, de junho de 2022, que anulou o direito constitucional ao aborto. Ficaram indignadas por, nas palavras dos magistrados dissidentes durante a votação do caso, “a partir de hoje, as mulheres jovens chegarem à maioridade com menos direitos do que suas mães e avós tinham”. Estavam preocupadas, enfurecidas e mobilizadas. As jovens mulheres negras lideraram a reação.
Eram as jovens mulheres que se registraram para votar em massa, mesmo quando especialistas como Andrea Mitchell, da MSNBC, comentavam que o aborto estava “desaparecendo” como preocupação dos eleitores nos meses seguintes à decisão da Suprema Corte. Foram as jovens que, de maneira assertiva e segura, disseram aos jornalistas que, muito embora o alívio da dívida estudantil fosse importante, o direito ao aborto era o que as motivava a votar. Erin Moore, 25, do condado de Bucks, Pensilvânia, resumiu desta forma: “Entrei na escola como uma aluna que esperava nunca conseguir pagar a minha dívida de empréstimo estudantil, mas o direito de escolha das mulheres afeta diretamente a mim, a minha família e as pessoas de quem gosto”. (Há tanto a se aprender com esse comentário sobre a dívida estudantil vitalícia! Se você não vive nos EUA, percebo que a dívida estudantil vitalícia não faz sentido para você). Lá estavam os numerosos estudantes da Universidade de Michigan que esperaram horas no frio para votar, com o último eleitor depositando seu voto às 2:05 da manhã.
Como resultado desta mobilização, no estado de Michigan, assim como na Califórnia e em Vermont, o direito ao aborto estará a partir de agora consagrado na Constituição estadual, enquanto que nos estados conservadores Kentucky e Montana, os eleitores rejeitaram emendas constitucionais antiaborto, mesmo quando votassem nos Republicanos. Em estados voláteis ou com equilíbrio eleitoral parelho entre democratas e republicanos, como Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, os jovens eleitores também ajudaram a garantir que o governador será um democrata.
Comentaristas de direita perceberam o que aconteceu, e apressam-se a oferecer “soluções” para o “problema”:
Sim, isso vai funcionar – NÃO!
Na condição de alguém que observa de perto a política do aborto, tive a sensação de que o fim desse direito seria um fator determinante. A votação de agosto de 2022 no Kansas, onde retumbantes 59% dos eleitores derrotaram uma proposta para retirar o direito ao aborto da Constituição do Estado, não foi uma aberração. As mulheres jovens do Kansas inscreveram-se para votar em número significativo antes daquele pleito. Mas, durante o verão e o outono, o tema do aborto ainda não parecia ser levado a sério pelos principais especialistas dos meios de comunicação, que focaram as questões econômicas como as verdadeiras preocupações dos eleitores no pleito de meio de mandato. Mesmo após os resultados da votação ficarem evidentes, eles sequer conseguiam entender o aborto como uma questão-chave.
A maioria das sondagens pré-eleitorais também errou. Claramente, os jovens nos EUA não atendem seus telefones para falar com os pesquisadores. E, mesmo que o fizessem, por que diriam a um estranho o que pretendiam fazer em relação ao aborto, nesses tempos de vigilância e denúncia por parte de parceiros, familiares e vizinhos? Medidas como SB8, a lei texana que permite a alguém receber “recompensa” de 10 mil dólares em dinheiro caso processe com sucesso qualquer indivíduo que tenha ajudado uma pessoa a obter um aborto ilegal, com certeza dissuadiriam muitos de responder a perguntas de pessoas desconhecidas sobre o tema. Mas, claramente, isso não impediu a geração Z de se mobilizar e votar.
Não fui a única a pensar que o direito ao aborto seria uma motivação importante nestas eleições: outras ativistas feministas e pelo direito ao aborto falaram exaustivamente sobre isso nos últimos meses. A decisão de junho da Suprema Corte foi um trovão. A perda de um direito fundamental produz determinação e foco.
No entanto, fiel ao estilo, o senador Bernie Sanders publicou um artigo de opinião no The Guardian, no dia 10 de outubro, intitulado “Os Democratas não devem concentrar-se apenas no aborto nas eleições de meio de mandato. Isso é um erro”, e fez campanha nessa linha. Que os democratas poderiam ter explorado melhor seus feitos econômicos significativos durante os últimos dois anos – desde o investimento em infraestrutura ao alívio da dívida dos estudantes, passando pela produção de microchips e pelo investimento em tecnologia de energia limpa – é ponto pacífico. Mas em que momento da campanha os Democratas se concentraram apenas no aborto? Sugere que, para um certo grupo de figuras políticas e comentaristas (homens, brancos e mais velhos), qualquer menção ao aborto é sempre demasiado.
Esta linha de argumentação também desconsidera a esmagadora evidência de que o aborto é de fato um assunto econômico, conforme discutido pela pesquisa multidisciplinar “Turnaway Study” sobre o aborto nos EUA. Gestantes a quem é negado o aborto enfrentam dificuldades financeiras significativas, assim como seus filhos. Experimentam diminuição no emprego e aumento na pobreza familiar, que dura em média quatro anos. Cinco anos após o aborto negado, essas pessoas ainda têm dificuldade para custear alimentação, moradia e transporte. A situação no crédito sofre um golpe, o nível de endividamento aumenta, e é mais provável que quebrem financeiramente e sejam despejados. Essas consequências econômicas são mais significativas para aqueles que já enfrentam dificuldades: metade dos que buscam aborto nos EUA a cada ano já vive na pobreza. Ter um filho sem condições para sustentar É um problema econômico enorme!
Infelizmente, em alguns estados, os obstáculos criados pelos legisladores estaduais para dificultar o voto jovem foram eficazes. O Texas viu uma participação menor de jovens do que outros estados. SB1, o texto inadequadamente chamado de “Lei de Integridade Eleitoral”, aprovado em setembro de 2021 pela Assembleia Legislativa do Texas, acrescentou restrições a empecilhos já existentes voltados ao eleitorado estudantil. SB1 interrompeu a votação antecipada de 24h, assim como a votação por drive-in, que tinha sido benéfica aos estudantes empregados e aos trabalhadores por turno. A lei endureceu as regras para o voto pelo correio, obrigando assim vários estudantes a voltar para casa para votar (o Texas é um estado grande!). A legislação anterior já havia descredenciado a carteira de estudante como uma forma de identificação do eleitor e proibiu os locais temporários de votação antecipada situados nos campi. Como resultado, apenas 50% das 36 universidades públicas do Texas e apenas 20% das nove faculdades e universidades historicamente negras do Texas tinham um local de votação antecipada no campus em 2022. As autoridades eleitorais também retiraram os locais de votação do dia da eleição de vários campi universitários. O resultado final: os jovens estão mais engajados do que nunca, por isso o Partido Republicano está suprimindo ativamente o voto deles.
Naturalmente, há eleitores da Geração Z que são veementemente antiaborto. Em um pequeno artigo publicado na revista Atlantic, em janeiro de 2022, o jornalista Christian Paz descreveu os participantes do Anti-Abortion Movement’s Gen-Z Victors, composto por jovens estudantes católicos ou evangélicos que participam da antiaborcionista Marcha Anual pela Vida em Washington, capital. Paz ficou surpreso com o quão jovens são os participantes da manifestação. Eu vi o mesmo contingente em 1º de dezembro de 2021, diante da Suprema Corte dos Estados Unidos durante as discussões orais do caso Dobbs: muitas jovens mulheres brancas que não têm a menor ideia de que, mesmo que rejeitem o aborto, ainda assim precisarão de cuidados obstétricos e ginecológicos competentes.
Os departamentos universitários de obstetrícia e ginecologia dos 13 estados americanos que proibiram efetivamente o aborto estão considerando atualmente o envio de seus estudantes de medicina para fora do estado para treiná-los na realização segura do procedimento: uma habilidade essencial para um obstetra, vital para lidar com o aborto espontâneo e com complicações gestacionais e para salvar a vida de mulheres. Sem isso, eles simplesmente não serão credenciados para a prática ginecológica e obstétrica. Quase a metade de todos os treinamentos em obstetrícia e ginecologia estão atualmente em estados que tornaram potencialmente ilegal a capacitação no procedimento. O resultado provável: menos ginecologistas e obstetras formados nos EUA.
Os EUA já têm a maior taxa de mortalidade materna e de recém-nascidos entre os países ricos. Não por acaso, os estados americanos que proibiram os abortos são exatamente aqueles que oferecem menos apoio às pessoas grávidas e que têm os maiores índices de mortalidade materna. Estar grávida nos Estados Unidos tornar-se-á mais perigoso, especialmente para as pessoas negras e pobres.
Os resultados desta eleição deixam claro que não podemos nos esquivar do acesso ao aborto. De fato, uma grande maioria dos eleitores americanos – nos estados vermelho (de maioria republicana) ou azul (de maioria democrata) – escancarou mais uma vez que querem que o aborto permaneça acessível e legal. Como disse a ativista Renee Bracey Sherman, fundadora da We Testify, organização que apoia pessoas a contarem suas histórias sobre o aborto, o tempo dos eufemismos acabou: “Todos amam alguém que já fez um aborto!”
Se você está nos EUA e quer investir em jovens eleitores e jovens candidatos, contribua para o Voters of Tomorrow, TurnUp, e para o New Georgia Project (os democratas ainda têm que vencer o segundo turno eleitoral de 6 de dezembro na Geórgia para devolver Raphael Warnock ao Senado dos EUA! Eu acabei de fazer minha contribuição).
Em nome da solidariedade feminista e juvenil,
FG