Desde 2020, agudas controvérsias vem ocorrendo em vários países que mobilizadas pelas correntes feministas “críticas do gênero”. Como mencionado em edições anteriores, essas tensões não são novas mas têm ganhado muita escala e intensidade na Espanha, Reino Unido, Itália, Austrália e também na América Latina, especialmente no México. Não é possível resumir aqui a multiplicidade e teor de todos os embates que se deram nessa ecologia nos últimos meses em todos esses quadrantes. Mas oferecemos informação um pouco mais detalhada sobre o que tem ocorrido na Espanha e no Reino Unido, cuja visibilidade é maior e cujos efeitos globais são mais evidentes.
Na Espanha, essas tensões vêm se desenrolando sobretudo na relação com os partidos de esquerda (PSOE e PODEMOS) e estão relacionadas a debates legislativos. Ganharam grande proporção no ano passado nos debates em torno da Lei de Identidade de Gênero. Em junho, apesar de muitas tensões, a lei foi aprovada no Conselho de Ministros e encaminhada ao Parlamento. Mas no processo de tramitação em curso, que envolve inúmeras consultas, inclusive com a sociedade civil, as feministas antigênero retomaram os protestos contra o conteúdo da legislação e a decisão do PSOE de apoiá-la.
Já no Reino Unido as frentes de conflito são múltiplas, mais complexas e muito mais agudas. Há embates no âmbito das políticas públicas para identidade de gênero, tensões crescentes no contexto acadêmico que envolvem o direito à liberdade de cátedra, enfrentamentos com relação à linguagem inclusiva, debates na esfera político-partidária e, mais recentemente, surgiu uma nova rede LGBTTIA+ alinhada com essas correntes feministas. Alguns desses enfrentamentos, em especial no campo acadêmico, têm sido bastante extremados. Não menos importante, até alguns anos atrás, essas controvérsias eram assunto dos tabloides, mas hoje estão na pauta da grande mídia que os tem tratado de maneira bastante problemática. A compilação do que coletamos sobre o Reino Unido está organizada de modo a que leitoras e leitores possam por si mesmos ter uma visão mais precisa desses muitos campos de batalha.
Mas vamos focalizar, brevemente, os problemas e debates envolvendo a mídia britânica, pois repercutem muito rapidamente em outros contextos. E também porque o tratamento dado por esses veículos a tais embates, em especial a linha adotada pelo The Economist, tem associado os conflitos em torno do gênero ao “viés totalitário da esquerda”, replicando, sem o menor pudor, argumentos da direita mais extremada sobre “marxismo cultural”, “cultura woke” e “cancelamento”. Essa linha editorial é inaceitável no caso de um veículo que se reivindica como voz do liberalismo político.
No dia 7 de setembro o The Guardian publicou uma longa entrevista com Judith Butler, cujo título é “Precisamos repensar a categoria mulher?”. Algumas horas mais tarde, a pergunta sobre o feminismo antigênero em que Butler fazia uma conexão entre essas posições e a política de extrema direita dos dias atuais foi eliminada. O jornal alegou razões técnicas que foram questionadas pela pessoa que entrevistou Butler. A censura provocou muitas reações, como o artigo de James Factora, traduzido para português. Em outubro, no que parece ser uma reparação do erro, o jornal publicou um texto longo da filósofa no qual ela reitera a posição expressa na entrevista nos seguintes termos: “Não faz sentido para as feministas ‘críticas de gênero’ aliarem-se com poderes reacionários que têm em sua mira as pessoas trans, não binárias e queers. O tempo da solidariedade antifascista é agora”.
Se de fato se trata de reparação, a atitude do Guardian é, contudo, excepcional, pois como analisa artigo recente de Tara John na CNN, a imprensa britânica não tem sido exatamente equilibrada no tratamento desses debates e embates. Exemplo disso é a “carta” publicada pela BBC em outubro em que uma autora do campo feminista antigênero relata episódios em que mulheres lésbicas teriam sido coagidas a ter relações sexuais com pessoas trans descritas como “pessoas vis”.
Como relata, significativamente, o The Guardian em matéria do dia 4 de novembro, mesmo após inúmeras reações, inclusive uma carta assinada por 20.000 pessoas, a BBC relutou em reconhecer o caráter transfóbico do texto e só mais tarde removeria uma parte do conteúdo. Antes disso, contudo, a “carta” foi publicada pela BBC Brasil, sendo muito rapidamente criticada por Bia Pagliarini. Mas não houve nenhum movimento da BBC no sentido de garantir o contraditório, abrindo espaço para vozes trans contestarem a matéria no próprio veículo.
Finalmente, para entender a genealogia desses complicados campos de batalha, recomendamos um texto da feminista Sara Ahmed (em espanhol) que dialoga e amplifica os argumentos desenvolvidos por Butler no artigo do Guardian. Ahmed resgata ciclos longos dos debates feministas sobre gênero, mas também identifica convergências problemáticas entre as posições das correntes “críticas do gênero” e o conservadorismo de gênero.