O estrépito em torno de alegado estupro coletivo de uma adolescente, que teria ocorrido no Rio de Janeiro, em maio de 2016, fez emergir, mais uma vez, o furor punitivo de determinados setores ditos progressistas incluíveis no que, já passados vinte anos, chamei de ‘esquerda punitiva’[1].
O alegado fato foi imediata e avidamente instrumentalizado para servir como uma suposta demonstração de uma construída ‘cultura do estupro’ que se faria presente no Brasil, não obstante a evidência de que o estupro é objeto de intenso repúdio pela imensa maioria da população brasileira, a ponto de acusados e condenados por tal conduta, quando presos, não poderem, em regra, ficar no ‘convívio’ com os demais presos, sendo mantidos, ainda em regra, no chamado ‘seguro’ como forma de garantir sua integridade física. Ao pretenderem confundir resquícios da ideologia patriarcal, que ainda se revelam com lamentável frequência em atitudes machistas, com uma suposta ‘cultura do estupro’, movimentos feministas e muitos homens, talvez necessitados de expiar uma culpa ancestral, formularam um discurso manipulador, em perfeita tradução do ‘dialeto penal’ de que falava Louk Hulsman[2].
Como o ‘dialeto penal’, tal discurso se destina a criar um clima artificialmente emocional, assim exacerbando reações que, além de alimentarem a expansão do poder punitivo (e a consequente multiplicação dos danos e dores provocados pelo sistema penal), acabam por obliterar medidas racionais e efetivas para um real enfrentamento dos fatos e condutas negativos cuja incidência se almeja afastar ou, pelo menos, reduzir. No caso em exame, a linguagem utilizada pode dificultar inclusive o reconhecimento das subsistentes atitudes machistas presentes em nossa sociedade. O exagero e a artificialidade do discurso, na hipótese, facilmente percebíveis, certamente podem contribuir para a recusa em reconhecer os efetivamente existentes resquícios da ideologia patriarcal.
Nessa manipulação do discurso, antes mesmo que se desenvolvessem as necessárias investigações que, no âmbito de inquérito policial, pudessem fornecer um mínimo de provas da existência do alegado estupro coletivo e subsidiar a eventual propositura de ação penal, a palavra da apontada ofendida foi erigida em verdade, em algo incontestável, qualquer questionamento ou qualquer dúvida sendo repelidos como manifestação da tal suposta ‘cultura do estupro’. Na ânsia de utilização propagandística do alegado fato, até mesmo muitos cultores do Direito que se intitulam ‘garantistas’ rapidamente esqueceram a lição de que, antes e no curso do processo penal, não há qualquer verdade, toda palavra de qualquer apontado ofendido sempre sendo questionável. Se, como dispõe a garantia da presunção de inocência, a acusação não passa de uma hipótese a ser eventualmente comprovada ou não, a palavra do apontado ofendido que, ao lado de outros elementos probatórios, embasa esta acusação consequentemente há de ser igualmente vista como algo que traz nada mais do que uma versão do alegado fato objeto da imputação, estando naturalmente sujeita a questionamentos e dúvidas que, submetidos ao contraditório, serão ou não desfeitos na instrução do processo. Só é possível falar em verdade ao fim do processo. Como oportunamente ressaltou Lucas Sada: “Há que ser enfático: não existe processo penal, inclusive por crime sexual, que não questione a palavra da vítima. Se não for assim (e alguns parecem desejar que não o seja), o que se tem é qualquer coisa menos o processo como pretendido pela Constituição de 1988. É da essência do processo penal que a versão da acusação (que retrata a versão da vítima no todo ou em parte) seja contraposta aos argumentos defensivos.”[3] No caso concreto aqui referido, a estigmatização de questionamentos e dúvidas sobre a versão trazida na narração de apontada ofendida como manifestação de uma repugnante ‘cultura do estupro’, decerto, significa um claro repúdio ao devido processo legal.
Não há diferença de essência entre o estrépito feito em torno do alegado estupro coletivo de adolescente, que teria ocorrido no Rio de Janeiro, em maio de 2016, e outras igualmente estrepitosas divulgações de fatos criminalizados particularmente aberrantes ou cruéis que, lamentavelmente, ocorrem em tristes momentos da convivência social. O estrépito, em todas essas ocasiões, em nada alivia o sofrimento de quem teria sido atingido, nem reflete sincera forma de solidariedade. Serve sim para fortalecer clamores por punições mais rigorosas, para estimular destrutivos desejos de vingança e, mais uma vez, alimentar a expansão do poder punitivo (com a consequente multiplicação dos danos e dores provocados pelo sistema penal). Serve sim para manipular emoções. Uns se mobilizam para estrepitosamente divulgar um latrocínio ou determinados homicídios, enquanto outros se mobilizam para estrepitosamente divulgar um estupro. Nem todos se comovem e/ou divulgam sua comoção diante de quaisquer fatos criminalizados aberrantes ou cruéis. A comoção costuma ser seletiva, em geral se manifestando apenas quando o perfil dos atingidos desperta alguma forma de identificação e/ou quando a comoção criada pode servir para veicular determinadas crenças, sentimentos ou posicionamentos políticos.
A atitude de quem se intitula ‘garantista’, mas nega o mínimo de garantias quando se vê diante de um alegado fato visto como especialmente ofensivo a suas crenças, sentimentos ou posicionamentos políticos revela clara adesão à antiga, nefasta e hipócrita prática de trabalhar com ‘dois pesos e duas medidas’, sob o aético princípio de ‘fins que justificam meios’, não se incomodando em manipular dores e tragédias (reais ou não), instrumentalizar fatos, eleger e sacrificar ‘bodes expiatórios’, em nome de uma suposta necessidade de fazer avançar suas justas (ou não) reivindicações político-sociais.
A atuação pautada pelos ‘dois pesos e duas medidas’ tem se manifestado ainda, nesses conturbados tempos ora vividos no Brasil, nas diferenciadas reações a atos que atingem políticos. Muitos dos que se dizem ‘garantistas’ permanecem silentes, e talvez até intimamente satisfeitos, quando insidiosos e ilegítimos meios de busca de prova, como delações premiadas ou escutas e gravações, revelam condutas ilícitas atribuídas a seus adversários políticos, ou quando contra eles são proferidas decisões divorciadas de normas inscritas na Constituição federal. Pense-se, por exemplo, na decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou o afastamento de Eduardo Cunha do exercício do mandato de deputado federal e, em consequência da presidência da Câmara dos Deputados[4]. Utilizando-se do dispositivo previsto na regra do artigo 319, VI, do Código de Processo Penal, que prevê a suspensão da função pública quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais, o Supremo Tribunal Federal, mais uma vez[5], ignorou o disposto na claríssima regra constante do § 2º do artigo 53 da Constituição Federal, que, ao estabelecer que “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”, impede a imposição a membros do Congresso Nacional de prisão preventiva e consequentemente das outras medidas cautelares não privativas da liberdade que a substituem. Atendendo aos desejos de afastamento daquele que foi alçado à condição de ‘inimigo’ pelos que o vêem como principal responsável pelo deslanchar do ilegítimo processo de impeachment da afastada presidente da República, a referida decisão não pareceu causar maiores desconfortos entre os setores ditos progressistas, nem sequer entre os que, cultores do Direito, se intitulam ‘garantistas’.
Silenciando ou até mesmo aplaudindo a violação a normas constitucionais, quando esta atinge seus ‘inimigos’, os setores ditos progressistas comportam-se exatamente como seus adversários. Se for para derrotar, enfraquecer ou afastar um adversário, tudo é permitido. Nem mesmo a certamente esperável e já amplamente demonstrada maior vulnerabilidade de políticos ditos ‘de esquerda’ à persecução penal e/ou a sanções de natureza política ou administrativa anima tais setores à defesa permanente dos princípios e garantias asseguradores do devido processo legal, da liberdade e da democracia.
Tais princípios e garantias são universais, não podendo ter sua aplicação submetida a ‘dois pesos e duas medidas’. Como já escrevi anteriormente[6], a universalidade de tais princípios e garantias naturalmente significa que sua incidência não discrimina destinatários, aplicando-se sim a todas as pessoas sem quaisquer distinções, sejam quem forem e por piores que possam ser ou parecer suas condutas. Aliás, a essência do Estado democrático mais se afirma quando seus princípios garantidores são aplicados a quem possa nos parecer odioso ou mesmo a quem nega ou ataca a própria democracia. O repúdio a manifestações autoritárias, ou a outras condutas prejudiciais ao bem-estar das pessoas, se faz com mais vigor exatamente quando se reconhece que mesmo quem nega ou ataca a democracia e que mesmo quem possa nos parecer odioso é titular de direitos.
A antiga, nefasta e hipócrita prática de trabalhar com ‘dois pesos e duas medidas’; o tratamento diferenciado para apontados ‘amigos’ e ‘inimigos’; a afirmação de direitos para uns e sua negação para outros são atitudes que inexoravelmente se opõem ao ideal da igualdade. Deveriam assim ser veementemente repudiadas por quem se coloca no campo de uma dita ‘esquerda’. O que distinguiria a ‘esquerda’ seria fundamentalmente seu compromisso com o princípio igualitário e inclusivo[7], compromisso esse presente ao menos nos generosos e solidários ideais que originalmente promoveram o desejo e as lutas por transformações sociais que assegurassem a todas as pessoas o atendimento das necessidades fundamentais para a sobrevivência e as mesmas oportunidades de acesso às riquezas e ao desenvolvimento individual.
Dizendo-se ‘de esquerda’, seria de se esperar, portanto, que os setores ditos progressistas fossem intransigentes e permanentes defensores da igualdade, em todas as circunstâncias. Quem luta por igualdade, certamente, não pode ter práticas desiguais. No entanto, como exemplificado nos episódios aqui abordados, muitos desses setores não hesitam em dividir o mundo entre ‘amigos’ e ‘inimigos’, reivindicando direitos e garantias para uns e desenfreado rigor punitivo para outros, não hesitando em assim agir com os famigerados ‘dois pesos e duas medidas’. O descompromisso com princípios chega ao ponto de permitir que até mesmo alguns setores que se apresentam como defensores da abolição do sistema penal sequer se envergonhem em publicamente reivindicar punição para seus eleitos ‘inimigos’, sem renunciar à sua anunciada condição de ‘abolicionistas’!
Talvez seja tempo de recuperar uma antiga linguagem ‘de esquerda’ e lembrar os velhos tempos em que falávamos de ‘contradições antagônicas’. Ou talvez a distinção entre ‘esquerda’ e ‘direita’ tenha mesmo perdido sua razão de ser. Ou talvez ainda eu tenha me enganado ao qualificar certa ‘esquerda’ de ‘punitiva’. A se acreditar na subsistência da distinção entre ‘direita’ e ‘esquerda’, talvez fosse mais apropriado dizer que os setores que chamei de ‘esquerda punitiva’ longe estariam de poder ser vistos como sendo de ‘esquerda’, da mesma forma que os seletivamente punitivos, certamente, longe estão de poder ser reconhecidos como ‘garantistas’. E os seletivamente punitivos ‘abolicionistas’? Definitivamente, as ‘contradições antagônicas’ não podem ser esquecidas!
Notas e Referências:
[1] Ver Maria Lucia Karam, “A Esquerda Punitiva”, in Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade n.1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1º semestre 1996.
[2] Ver Louk Hulsman, Penas Perdidas (trad. Maria Lucia Karam). Niterói: Luam, 1993.
[3] Ver Lucas Sada, “Estupro, miséria humana e processo penal”. Empório do Direito. 01/06/2016. http://emporiododireito.com.br/estupro-miseria-humana/ (acesso em 01/06/2016).
[4] Decisão proferida na Ação Cautelar 4070 pelo ministro relator e, posteriormente referendada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.
[5] A anterior desconsideração da regra constante do § 2º do artigo 53 da Constituição Federal se deu em decisão na Ação Cautelar 4039, em que, para driblar aquela vedação constitucional de prisão fora da hipótese de flagrância, o Supremo Tribunal Federal não se envergonhou em solenemente proferir um juridicamente esdrúxulo ‘decreto de prisão em flagrante’ do Senador Delcídio Amaral.
[6] Ver Maria Lucia Karam, Escritos sobre a Liberdade, vol.1: Recuperar o desejo da liberdade e conter o poder punitivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
[7] Ver a clássica obra de Norberto Bobbio, Destra e sinistra: ragioni e significati di una distinzione politica. Roma: Donzelli Editore, 1999.
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Maria Lúcia Karam é juíza de direito aposentada do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, ex-juíza auditora da Justiça Militar Federal e ex-defensora pública no estado do Rio de Janeiro.
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Fonte: http://emporiododireito.com.br/esquerda-punitiva-maria-lucia-karam/