por Fábio Grotz
No Brasil, tendo em vista a trajetória da política de resposta ao HIV-AIDS, mas também da política de saúde reprodutiva – as quais, entre os anos 1980 e meados dos anos 2000, tiveram um curso muito positivo –, seriam inevitáveis os danos e repercussões vindos da política sexual do governo Bolsonaro. É preciso dizer, porém, que ao longo dos primeiros 120 dias e um pouco mais da nova administração, a saúde pública parecia estar imune ao tsunami de decretos e medidas draconianas, que, em outras áreas, especialmente meio ambiente e educação, estão sendo adotadas para demolir o que existe, especialmente financiamento público, regulação estatal e proteção de direitos. Nas palavras de um observador da política setorial, o Ministério da Saúde continuava sob “a mesma direção”. Mas já havia sobressaltos.
Como aponta Veriano Terto, coordenador-executivo da Associação Brasileira de Aids (ABIA), no seu balanço da política de AIDS, registraram-se dois ataques moralistas a materiais educativos produzidos pelo Ministério da Saúde (aqui e aqui). Além disso, a imprensa noticiou problemas na compra de anticoncepcionais e, especialmente, de Misoprostol para uso obstétrico e nos serviços de aborto legal. Também é importante referir que o decreto presidencial, estipulando o final de junho como prazo para extinguir vários conselhos de participação cuja função é auxiliar o Executivo na formulação e execução de políticas públicas, veio como um sinal forte do viés antidemocrático da nova gestão e eliminou instâncias de participação de populações muito vulneráveis ao HIV. Paula Viana, do Grupo Curumim, com quem também falamos para explorar o que estava acontecendo em termos de saúde sexual e reprodutiva de maneira mais ampla, também sublinhou a completa ausência de diálogo com a nova gestão e apontou para a possibilidade de efeitos negativos na política de saúde da mulher, em razão do alinhamento do governo com os setores mais conservadores da área médica.
Até o início de maio, contudo, não havia sinais fortes de mudanças estruturais, inclusive porque a maioria dos novos gestores nomeados já era composta por funcionários do Ministério da Saúde e, aparentemente, alinhados com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo alguns técnicos ouvidos, o Ministério “seguia executando as políticas sem grandes alterações”.
Mas, no dia 3 de maio, o Ministério publicou um despacho para abolir da nomenclatura oficial o termo violência obstétrica. Essa medida insólita suscitou críticas de parte dos atores e vozes mais diversas e pode ser lida como um primeiro sintoma de que uma tempestade se aproximava. No dia 17 de maio foi, então, publicado outro decreto (Decreto 9.795) que modifica radicalmente a estrutura de gestão do Ministério. Entre outras medidas, o decreto transformou o Departamento de HIV-AIDS, Hepatites Virais e DTSs numa coordenação, atribuindo a mesma a gestão de enfermidades como tracoma e verminoses – cujo perfil epidemiológico difere substantivamente do HIV e hepatites. Por outro lado, transferiu a função estrutural de compra e provisão de antirretrovirais que estava sob gestão do antigo Departamento para o Departamento de Assistência Farmacêutica.
A Área Técnica de Saúde da Mulher — já muito debilitada desde o governo Dilma Rousseff quando já havia sido reconvertida ao modelo materno-infantil – também foi rebaixada, agora integrando uma nova Coordenação-Geral de Ciclos da Vida. Essa mudança sinaliza para o potencial apagamento definitivo do que ainda restava das diretrizes de saúde sexual e reprodutiva que a inspiravam nos anos 1980 e 1990. Isso não surpreende, já que essas diretrizes são vistas por ideólogos do governo, como o ministro de Relações Exteriores, como mero subterfúgio para legalizar o aborto.
Essa inflexão brusca na política nacional de saúde é uma ilustração cabal de como a administração Bolsonaro mimetiza uma guerra permanente, na qual gestores tomam medidas estruturais sem anúncio prévio, possivelmente com o objetivo de desnortear a crítica e a resistência. Faremos em seguida um breve balanço do que aconteceu no âmbito da resposta ao HIV e da Saúde da Mulher antes da publicação do Decreto 9.795 para, em seguida, compartilhar as análises e críticas desenvolvidas desde o dia 17 de maio acerca dos impactos das medidas então anunciadas.
A resposta ao HIV/AIDS: primeiros sintomas
Veriano Terto, coordenador executivo da ABIA, quando entrevistado no final de abril, já avaliava os primeiros meses do governo como nada animadores, muito embora não houvesse sido tomada nenhuma decisão que afetasse a espinha dorsal da resposta brasileira, que é o acesso universal aos medicamentos:
“Aparentemente, está tudo normal. Mas reitero: aparentemente. Ainda não tivemos um retrocesso concreto, mas a conjuntura sugere um futuro sombrio. A mentalidade do grupo político e ideológico no poder, assim como os setores sociais que lhe sustentam, é abertamente hostil a uma agenda que tenha como base princípios de cidadania, direitos humanos e justiça social. Logo, se não temos ainda ameaças diretas à política de HIV/Aids, não podemos dizer o mesmo em termos mais amplos. As propostas, teses e discursos do governo têm criado um ambiente social, cultural, político e econômico de adversidade à sustentabilidade da resposta à epidemia.”
Para ilustrar as condições do ambiente, Terto mencionou dois episódios de censura de materiais educativos. O primeiro deles atingiu a cartilha de prevenção de infecções sexualmente transmissíveis para homens trans. Muito embora técnicos do Ministério tenham alegado que a cartilha foi suspensa para correções, no clima de pânico sexual que prevalece na administração a medida nunca poderia ser considerada como trivial. Mais perturbador, contudo, segundo Terto, foi assistir ao presidente na televisão, ladeado por dois generais, incentivando mães e pais a rasgar páginas da caderneta de saúde do adolescente com imagens da anatomia sexual e reprodutiva (veja aqui). A caderneta oferece informações sobre cuidados básicos de saúde, prevenção à gravidez e a doenças sexualmente transmissíveis. Segundo Terto, há mais de dez anos tem sido distribuída e nunca houve nenhuma reclamação quanto a seu conteúdo. Além disso é uma das poucas cartilhas para a faixa dos 12 aos 14 anos que corresponde à iniciação da vida sexual.
O coordenador-executivo da ABIA também fez referência ao veto presidencial de um projeto de lei que dispensava pessoas soropositivas da perícia periódica no INSS, cujo objetivo é, evidentemente, ameaçar a concessão e continuidade do benefício aos segurados:
“O efeito para uma pessoa com HIV/Aids, que talvez esteja há anos ou mesmo décadas fora do mercado de trabalho e sofre com os efeitos do tratamento, é devastador. Como essa pessoa poderá voltar ao mercado de trabalho? Não existe uma política de prevenção à epidemia voltada para o mercado de trabalho e nem mesmo uma campanha de combate ao estigma contra o trabalhador vivendo com HIV/Aids. É uma situação de insegurança jurídica para milhares de soropositivos, o que é inclusive prejudicial à saúde dessas pessoas.”
Terto também avaliou de maneira muito crítica a política nacional de drogas adotada pelo novo governo que promove a abstinência como recurso terapêutico, exclui a redução de danos e favorece o apoio a comunidades terapêuticas (em sua maioria geridas por igrejas evangélicas). Segundo ele, as novas diretrizes rompem com a abordagem aplicada no Brasil desde os anos 1990, muitas vezes em associação com a prevenção do HIV, e tem a virtude de não reduzir a pessoa a condição drogadito ou doente, enxergando-a como cidadã com direitos, dignidade, possibilidades. Para o coordenador da ABIA, a nova política de drogas obedece, sobretudo, a uma pauta moral:
“O retorno da abstinência como ferramenta de tratamento da drogadição é um agrado à parte do eleitorado do governo, especialmente os evangélicos. Trata-se de uma articulação ideológica e moralista. Como sabemos, e inúmeras pesquisas nos dizem, a abstinência não é o melhor e mais eficaz caminho para se combater a dependência. Mas isso não parece ser do interesse da atual gestão, ainda mais porque a ênfase nas comunidades terapêuticas não é apenas um agrado ideológico à base evangélica. Favorece o acesso das igrejas aos recursos públicos de saúde mental. Também nos preocupa que a nova política adote postura contrária à descriminalização das drogas. Para nós que trabalhamos no campo dos direitos humanos, a linguagem criminal é sempre um problema, pois afasta e pune quando o foco deveria ser o diálogo, acolhimento e solidariedade. É justamente esse um dos efeitos da abstinência, afasta as pessoas e dificulta o diálogo. Essa lógica também afeta negativamente a resposta ao HIV/Aids. Como debater e dialogar em prol da prevenção à epidemia, se a postura oficial é, ela própria, excludente? Como vamos avançar na discussão sobre discriminação e preconceito se o que se tem é um esforço para silenciar a conversa? Esses conceitos excludentes compõem um clima de ameaças muito preocupante e aflitivo”, observou Veriano Terto, chamando atenção que, em todos esses recuos, a sociedade civil, fundamental na construção e reconhecimento da resposta brasileira ao HIV/AIDS, foi alijada dos processos decisórios e das discussões.
Nesse contexto, de ataques a todo um conjunto de políticas sociais e de esvaziamento dos mecanismos de controle social, a súbita reestruturação do Ministério da Saúde não chega a ser uma surpresa, mas seus efeitos são drásticos. Como aponta a nota pública da Associação Nacional de Aids (ANAIDS), podem e devem ser lidos como o fim da política nacional de AIDS:
Não se trata apenas uma questão de nomenclatura: é o fim do Programa Brasileiro de AIDS. O governo, na prática, extingue de maneira inaceitável e irresponsável um dos programas de AIDS mais importantes do mundo, que foi, durante décadas, referência internacional na luta contra a AIDS. Mais do que um programa, esse decreto acaba com uma experiência democrática de governança de uma epidemia baseada na participação social e na intersetorialidade.
Alguns dias mais tarde, respondendo a reação oficial do Ministério à essa e outras críticas, a ABIA publicou uma nota técnica que analisa como a reestruturação foi feita sem transparência e reflete o clima mais amplo de ruptura democrática. A nota enfatiza que não se sabe como será a distribuição de recursos entre os vários programas agora alocados no novo Departamento de Doenças e Condições Crônicas e ISTs, no qual a política de combate ao HIV/Aids passa a estar alocada. Sobretudo, mostra como essa reforma “administrativa” vai afetar, negativamente, a espinha dorsal da resposta brasileira, ou seja, o acesso universal aos medicamentos anti retrovirais. No novo organograma, a responsabilidade pela licitação, compra, armazenamento e distribuição de insumos foi transferida para o Departamento de Assistência Farmacêutica (DAF), que é responsável pela totalidade de operações do SUS. Essa mudança implica descaso com a expertise acumulada pelo extinto Departamento de DSTs, AIDS e Hepatites Virais e tende a tornar essas operações mais burocráticas e menos ágeis o que, potencialmente, compromete o acesso ao antirretrovirais. Não mesmo importante, vai dificultar a avaliação e acompanhamento epidemiológico que é crucial para medir os benefícios do tratamento.
Saúde da mulher: Sinais preocupantes, e o silêncio que se amplia
Já na Área Técnica da Saúde da Mulher, o SPW apurou que, desde janeiro, a sensação na equipe técnica era de que a transição não tinha começado, mas era esperada a qualquer momento. A despeito de diálogos com outras pastas, em que claramente prevalecem visões conservadoras e regressivas em relação à saúde sexual e reprodutiva, como o Ministério dos Direitos da Mulher, Saúde e Direitos Humanos e o Ministério da Educação, as diretrizes e procedimentos em relação à contracepção, por exemplo, continuavam incólumes ao entorno barulhento da guerra moral estimulada pelo governo.
As equipes técnicas continuavam atuando nos marcos de programas e políticas estabelecidas e não havia até ali “nenhum instrumento normativo ou instrutivo” abertamente contrário às diretrizes de saúde sexual e reprodutiva consolidadas no MS. E os gestores de primeiro nível mostravam-se alinhados com os princípios do SUS. A calmaria acabou quando foi publicado o decreto de “abolição da violência obstétrica”. Segundo Paula Viana, o documento não tem caráter regulatório ou legal, mas sinalizava para uma forte influência de posições antifeministas e antisaúde reprodutiva na gestão ministerial.
A medida teve, porém, uma razoável repercussão na imprensa e redes sociais. E dias depois, o Ministério Público Federal de São Paulo fez uma recomendação ao Ministério da Saúde, orientando que a pasta abstenha-se de promover ações contrárias ao termo que o MPF-SP ressalta ser “expressão consagrada em documentos científicos e legais”.
Como já mencionado, o novo organograma estabelecido pelo Decreto 9795 rebaixou a Área Técnica de Saúde da Mulher a uma subcoordenadoria na nova Coordenadoria-Geral de Ciclos da Vida. Segundo observadoras ouvidas, ainda não é possível avaliar o que isso vai significar para uma área de política que já vinha debilitada desde algum tempo. O que parece certo é que sua autonomia financeira será restringida. Em meio a tormenta, e mesmo após transcorrer duas semanas após o anúncio, os potenciais efeitos deletérios não provocaram maiores reações ou críticas.
À diferença da rápida resposta da sociedade aos impactos sofridos pelo Departamento de HIV/AIDS o tratamento dispensado, pelo governo, à saúde da mulher foi respondido com um incômodo silêncio. Frente a ele cabe perguntar: o que explica a falta de debate e interesse por uma política que continua a ter enorme relevância para o bem-estar e os direitos humanos da grande maioria de mulheres brasileiras, que dependem do SUS para o prenatal, o parto e muitas outras necessidades de saúde reprodutiva? Esse silêncio, inclusive, está em contradição com a repercussão negativa da medida de “abolição da violência obstétrica”, já que para a maioria das mulheres brasileiras, em especial as mais pobres, as mais jovens e negras, há como eliminar os maus tratos, discriminação e racismo a que estão sujeitas nos serviços de saúde na ausência de uma política pública sólida de saúde sexual e reprodutiva.
Imagem: Natchez, 1986, por Jean-Michel Basquiat