Andar munida de camisinhas nem sempre é garantia de sexo seguro para as mulheres. Há ainda a negociação com o parceiro na hora de usar. Não rara, a resistência dos homens tem motivos comuns: o preservativo aperta, interfere na ereção e na sensibilidade, ou ainda o seu tamanho não corresponde ao do pênis. Antes de o preservativo masculino cortar o clima como muitos afirmam, é a própria oposição deles ao uso que deveria tirar o desejo das mulheres, afinal elas correm riscos duplos. Sujeitas a uma gravidez não planejada, são mais propensas a contrair o HIV. Mais que uma opção, a camisinha feminina é o único método que dá à mulher o controle da proteção para gozar sem descuidar da saúde e dos projetos de vida. É também uma resposta de amor ao corpo que exige conhecimento sobre ele e empoderamento para vencer a carga de estereótipos relacionados ao uso. Esse é o primeiro capítulo da Série Especial Camisinha Feminina.
A subutilização da camisinha feminina revela um fato ligado ao histórico controle da sexualidade das mulheres: a decisão sobre a proteção (e sexo) ainda está concentrada nas mãos dos homens. Enquanto camisinhas masculinas estão disponíveis para venda em quase todos os estabelecimentos comerciais, a versão feminina não é encontrada nem mesmo em farmácias. Acessá-la gratuitamente nos postos de saúde também não é simples. Mas, por que a camisinha íntima não ganhou a simpatia do seu público mais interessado? A se levar em conta que a maioria das mulheres nunca ousou experimentá-la, a resposta pode estar envolta em um círculo vicioso entre falta de informação e de acesso.
O preconceito em relação à estética do preservativo e o receio de introduzi-lo no próprio corpo são alguns dos tabus que formam uma barreira entre as mulheres e a versão específica para o público feminino. A raiz da subutilização se explica mais pela desigualdade de gênero do que pelas dificuldades no uso, como acredita Katia Souto, responsável pela implantação do preservativo feminino no Brasil, em 2001, pelo Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde. Ela defende que a camisinha dá autonomia para mulheres na medida em que facilita o uso e impacta no cuidado com a saúde sexual e reprodutiva.
Massageia o clitóris
A camisinha feminina não só amplia as possibilidades de proteção pela resistência e cobertura da região dos lábios vaginais, como pode garantir maior prazer por massagear o clitóris. Ela não “corta o clima” e exige ereção, como a masculina, e pode ser colocada antes da penetração, ainda nas preliminares. Apesar de não haver estudos clínicos que confirmem a eficácia do preservativo feminino na prática do sexo oral e anal, muitas vezes ele é usado. É indicado também pelo Ministério da Saúde para relações sexuais entre lésbicas.
No pacote de benefícios destaca-se o principal: a versão feminina dá às mulheres as rédeas sobre a proteção. Talvez por isso, sua propagação não interesse a uma sociedade que ainda controla o corpo das mulheres, conforme analisa a advogada Carla de Avellar Lopes.
“O uso da camisinha feminina é um passo importantíssimo na autonomia da mulher. Já me já ajudou em relações em que o cara tinha dificuldade de manter a ereção com camisinha masculina e foi fundamental pra me sentir mais segura em largar o anticoncepcional. Foi simbólico”, revela a jovem de 24 anos.
Falta Costume
Carla decidiu parar de tomar pílula anticoncepcional, depois de cincos anos de uso ininterrupto, em busca de um método que não impactasse negativamente na sua saúde. Desde então, passou a usar a camisinha feminina – com mais frequência quando ainda estava solteira. Numa relação estável há dois anos, a advogada diz que faz uso alternado das versões feminina e masculina.
“Tem muito cara que não aceita. Eles não acham esteticamente atraente ter um saquinho pendurado da sua vagina. A gente aceita camisinha masculina porque já usou várias vezes e sabe tirar e por de olhos fechados. O estranhamento é pela falta de costume”, assegura.
O namorado adaptou-se tanto que passou a sentir mais sensibilidade com o método feminino. A advogada, no entanto, alerta que é preciso cuidado no uso para manter a proteção. “Tem que estar sempre atenta, porque o preservativo sai do lugar, e às vezes expõe parte da vagina, se der bobeira deixa escorrer o esperma.”
A regularidade no uso só é possível porque a advogada recorre a organizações como a Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (Adeh) e o Arco-Íris Direitos Humanos, onde a distribuição é gratuita. “Nas poucas farmácias em que havia camisinhas, elas estavam escondidas. Encontrei um pacote com duas unidades pelo valor de R$ 12. Recusei-me a comprar”, relata.
Aversão masculina
A resistência do parceiro no uso do preservativo masculino é um dos principais motivos que levam mulheres a buscarem a versão feminina, como afirma Simone Martins, coordenadora de projetos da Semina, importadora e distribuidora da camisinha Della.
Ela destaca ainda que diferente do que acontece com a masculina, a feminina não precisa ser retirada imediatamente ao ato e, por ter um diâmetro maior, não aperta o pênis – outra reclamação comum dos homens.
A.S.C, 24 anos, estudante da UFSC, passou a usar a camisinha feminina, depois de uma experiência traumática: engravidou de forma indesejada e contraiu uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST). A entrevistada conta que começou a transar com 16 anos sem ter conhecimento sobre o próprio corpo. Suas referências de sexualidade se restringiam a filmes pornô. “Logo engravidei e peguei uma DST (ou IST), mesmo que tenha me curado, entendi que podia ter contraído HIV. Depois disso nunca mais quis transar sem camisinha. Os caras nunca tinham e eu acabava não transando”, conta. A. não se expôs mais. Passou a andar munida com preservativos masculinos que coletava nos postos de saúde. Para sua decepção, ter a camisinha em mãos não garantia sua proteção.
Como usar?
No vídeo abaixo, a enfermeira sanitarista Carmen Lucia Luiz explica como usar a camisinha feminina. Ela também defende o uso. “A camisinha é tão boa quanto a masculina. A grande diferença é que ela dá autonomia para a mulher que passa a não depender da parceira ou parceiro. A mulher usa autonomamente”, assegura.
Carmen, que também é conselheira do Conselho Nacional de Saúde, alerta que muitas doenças não se manifestam nos homens, isso não quer dizer que eles não sejam portadores de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) ou HIV.
A série Especial Camisinha Feminina segue com mais quatro capítulos. Relatos sobre o uso podem ser feitos na página ou e-mail portalcatarinas@gmail.com.
Especial Camisinha Feminina 2: os obstáculos para acessar o método
O último estudo sobre a camisinha feminina, realizado pelo Ministério da Saúde em 2005, apontou que apenas 4,7% dos homens e 3,5% das mulheres haviam usado alguma vez na vida. É difícil delimitar causa e efeito dessa subutilização. Com mais da metade da população formada por mulheres, o Brasil é um dos países que mais compra camisinha feminina no mundo. Ainda assim, a quantidade de preservativos femininos distribuídas pelo governo é insignificante se comparada à versão para os homens. No ano passado foram distribuídas, em todo o país, 552 milhões de camisinhas masculinas e apenas 22 milhões de femininas – o que representa 4% do total. Em Santa Catarina, a representatividade cai para 3% e em Florianópolis para 1%.
“O menor número distribuído quando comparado com o preservativo masculino se deve a melhor aceitação deste último e também pela limitação no valor do feminino”, afirma Adele Benzaken, diretora do Departamento de DST, Aids e Hepatites Viriais (DDAHV).
A “melhor aceitação” da masculina, no entanto, é resultado de vários fatores, entre eles o incentivo prioritário a ela. Sem protagonismo em campanhas de conscientização, a camisinha sequer fica exposta nos postos de saúde, ao lado da tradicional. “O departamento entende que existe um trabalho árduo para que o PF possa ser melhor utilizado como uma alternativa de prevenção das ISTs/Aids e gravidez não planejada. Tem desenvolvido ações para estimular o uso em vários estados priorizando algumas populações mais vulneráveis”, declara a diretora.
Atualmente a distribuição dos preservativos é voltada para todas as mulheres, “considerando as necessidades declaradas pela usuária e a disponibilidade do insumo nos serviços de saúde”, como esclarece Adele.
Na capital
Em Florianópolis, apenas 900 camisinhas são distribuídas ao mês às unidades de saúde – o que não garante o acesso das mulheres – , enquanto a quantidade de masculinas chega a 100 mil. Ana Cristina Vidor, gerente de Vigilância Epidemiológica da Secretária Municipal de Saúde, explica que o incentivo ao uso ocorre por meio de reuniões de planejamento familiar e abordagem da saúde da mulher nas consultas.
No posto de saúde em Santo Antônio só havia duas unidades no “estoque”. Elas não ficam disponíveis como a masculina sob a justificativa da necessidade de orientação sobre o uso. Na unidade do Saco Grande também não é diferente. Há poucas camisinhas femininas disponíveis. A farmacêutica Fernanda Manzini explica que quase não faz pedidos do insumo em função da pouca procura.
“Há disponibilidade de camisinhas femininas nos postos de saúde. Mas, por não serem tão populares e necessitarem de orientação para utilização correta, não ficam expostas para que o usuário pegue livremente, como ocorre com as camisinhas masculinas. Em vez disso, são oferecidas em consulta pelos profissionais de saúde e entregues após orientação do uso”, justifica Ana Cristina.
Impacto do gênero no mercado
Em apenas uma das cinco farmácias consultadas por Catarinas, em Florianópolis, o preservativo foi encontrado. Ainda assim, não há opção de marcas. O preço assusta: a Prudence, única disponível, está à venda por de R$ 22. Adele atenta para o fato de que a cultura de gênero e da sexualidade impactam no desenvolvimento de produtos e dos mercados. “Como o preservativo feminino está envolto de pouca popularidade, o produto ainda tem um valor de custo muito maior que o masculino, prejudicando a sua venda nas farmácias”, analisa.
Simone Martins, coordenadora de projetos da Semina, distribuidora da marca Della no Brasil, explica que o produto é comercializado por duas grandes redes Onofre e São Paulo, pelo valor médio de R$ 8. Porém, a venda é majoritariamente on-line. “O investimento em marketing é um impeditivo para a entrada em outras redes que possibilitem a ampliação da venda no país todo”, aponta.
A marca é fornecida nas versões branca e rosa, ao setor público, e branca e roxa, ao privado. O Ministério da Saúde distribui também o insumo em embalagem específica nas cores amarelo e roxo. De acordo com a coordenadora, o Brasil segue a tendência mundial de acesso à camisinha feminina fomentado pelo setor público. “Na maioria dos países, a camisinha feminina é voltada ao setor público para atender pessoas com menos condições de acessá-las nas farmácias. As constantes compras do MS servem como sensor de aceitação”, destaca.
Para ela o maior desafio do setor público é tornar o preservativo íntimo conhecido.
“A capacitação do provedor de saúde é a maior necessidade. Ele precisa oferecer o método e fazer o aconselhamento. Se ele não sabe explicar o método, fica difícil que a usuária decida por si só. A mulher encontra tantos obstáculos que desiste e o insumo continua lá parado, porque não tem ninguém para explicar”, opina.
Simone, que atuou na introdução da versão feminina no mercado brasileiro em 1997, explica que o método passou a ser distribuído pelo MS depois de um estudo nacional que indicou 71% de aceitabilidade. Inicialmente foi fornecida para as chamadas populações prioritárias. Desde então, já foram distribuídas cerca de R$ 50 milhões de unidades em todo o país. Só na última compra em 2014 foram R$ 40 milhões.
“O governo brasileiro sempre esteve na vanguarda da proteção à Aids. Na época, o MS entendeu que o método poderia ser somar às ações de prevenção”, lembra a coordenadora.
Mais resistente e barata
Em 2009, a necessidade do fabricante de realizar melhorias e reduzir custos levou à substituição da versão em poliuretano pela borracha nitrílica. Os materiais são alternativas sintéticas à borracha natural, conhecida como látex. Além de mais resistente do que o látex – presente na maioria das camisinhas masculinas – o método é antialérgico, permite maior sensibilidade e uso diversificado de lubrificantes, tanto a base de água quanto de óleo. Além de reduzir o custo do insumo, a versão em borracha nitrílica eliminou o ruído durante o uso, uma das principais reclamações ligadas à camisinha em poliuretano. Não há fábricas de camisinhas no Brasil; elas se concentram na Ásia, cujos países são os maiores desenvolvedores de borracha do mundo.
Compras pelo Ministério da Saúde
- 2000 – 2 milhões
- 2001 e 2002 – 2 milhões
- 2003 e 2004 – 4 milhões
- 2005 e 2006 – 4 milhões
- 2007 e 2008 – 4 milhões
- 9 e 10 – pausa em função do registro da camisinha em borracha nitrílica
- 2011- 20 milhões
- 2014 – 40 milhões
- 2014-2015 – 40 milhões