por Maria Eugenia Matricardi
Uma borboleta branca sobrevoa o vapor úmido, próxima à cachoeira. Uma gota assertiva pode lhe aniquilar a vida, destruir suas asas de seda frágeis. Ela se arrisca por encantamento, como se arriscaram por encantamento da luz da lâmpada os insetos carbonizados.
Assim fui acometida por uma imagem: meu corpo nu recebendo um fluxo de água intenso da mangueira de um caminhão. Uma nitidez que não passa pelas palavras, pois as palavras nos enveredam pelo labirinto da dúvida. Lucidez delirante assumindo os desejos com a crueldade que eles desejam sentir. Não há submissão, há entrega. O que somos capazes de fazer por uma sensação? Não se sabe. Acredito que muito. Era algo mais próximo à intuição, ao não- sabido, imagem praticamente intacta, sensação que permaneceu consistente até ser executada. Não havia muito que dizer. Caberia apenas ser na sensação, assumir a imagem como experiência e confiar na força que ela invocava. Mergulhar na sensação até deixar de tê-la, ou ainda, ser-sensação e na sensação como um estado que percorre corpointeiro [sic]. e abandona o organismo.
Um corpo nu, um caminhão pipa com vinte mil litros de água, dois homens para segurar a mangueira, uma estrutura arquitetônica limpa visualmente, fim de tarde, pôr-do-sol. Água, luz, corpo. Água densa, flexível, abraça formas existentes, se molda, flui capaz de deformar e perfurar as superfícies mais duras.
Retiro o roupão, me posiciono nua de costas para a parede externa do museu, peço para acionarem a mangueira na pressão máxima. O corpo intima o fluxo, estabelece lugar de combate. O jorro de água comprime, deforma a carne, superfície contra superfície; espaço incidente onde as coisas se manifestam em sua materialidade somente em relação ao seu limite contra o espaço. Contraposição: estar contra como forma de engendrar com-tato, zonas de aderência. Corpo contra conceito. Conceito contra conceito. Corpo contra corpo. Na vulnerabilidade de deixar-se escorrer, deixar o corpo vibrar sem organismo. Pele água, pele fluxo, pele ar, quase nada, poça no chão.
O corpo incorre, escorre, se lança, se expõe, flui, se deixa arrebatar pela pressão do jato, é empurrado contra o duro, concreto, realidade: limite inegável que se impõe como barreira material. Atua no limite propondo deslimites.
A violência desta ação nada tem a ver com a violência das guerras ou da polícia. Em ambos os casos a violência transpassa o corpo, o sistema nervoso, a carne. Mas uma lhe faz mergulhar na sensação abrindo caminhos para que se possa conhecer outros lugares de experimentação, onde a vida não depende do organismo, por isso mesmo vai além dos limites do que é representado, vivido. A outra lhe rouba a subjetividade, atua por medo e constrangimento, determina e localiza os lugares onde podem habitar as sensações, estancando, desta forma, a potência do sensível. Se me lanço na tempestade variável é para sentir o corpo vibrar, não o organismo.
O jato de água violento dispersa manifestações, cala a revolta dos presos em ritual humilhatório, controla. Ele é trazido na ação com a crueza arrebatadora de um poder, sem o horror destas imagens, somente com a sensação que o torna controle presente em diversos níveis, agência do poder imanente sobre o corpo, deformando a carne. Este é um fato recorrente, mas se atualiza na ação como acontecimento singular. Preferi usar poucos elementos, deixar acontecer com força de reverberação própria, sem poluição visual ou simbólica. A brutalidade não anula a beleza.
Prefiro quando o corpo diz sem dizer. Grita em silêncio fazendo a vida reverberar na superfície da pele. Suspende hábitos, rasga roupa, entende corpo como corpo, só isso, tudo isso…muitos podem ser os tipos de nudez: desterritorializada ou não, navalha na carne, pornográfica, sagrada, sutil, rito de gênese, travesti na pista, gesto no mundo, não importa: que o corpo seja campo de batalha.
Sendo a ação algo que não se diferencia da vida, gesto estetizado sim, intencional, poético, no entanto, grávido de inusitado, de vibratilidade do corpo, das coisas que passam, portanto, vulnerável, me pergunto: o que se preserva?
A água arrebenta a dor que há na pele. Pele-água escorrendo. O fluxo-jato lava a lucidez do corpo. Derretimento. Densidade. Água-viva. Absorção. Não absorvo nada, as coisas me absorvem.
O que se pode dizer quando o corpo abandona o organismo e surgem as sensações que excedem qualquer vivido? Não seria esta uma possibilidade de criar afectos, lugares de sensação que indeterminam nossa compreensão?
Se a ação se baseia no vivido, no cotidiano, se ela transita por opiniões, não é para buscar o espetáculo. Ela abre via para tornar sensíveis forças insensíveis do cotidiano.
Para captar uma determinada força de sensação é necessário deixar-se permear por ela, torná-la visível. É necessário ser frágil para abrir-lhe caminhos e ser forte para suportá-la, porque nem sempre a melhor sensação para uma ação é a mais agradável. Com muita frequência não é.
Afastar de si o que é fácil. Há esforço, há fraqueza, há mergulho nas próprias sombras para encontrar leveza. O corpo tem sabedoria própria, sabe pelo sabor, experimenta com corpointeiro algo isolado no abissal de suas sensações que se escapa de si. Este possui caminhos que não deixam rastros, ativa seus próprios agentes despovoadores.
O impacto dos vinte mil litros de água já não afogava mais. Não me defendia. Me entregava. A dor que mobilizava a pele e os órgãos foi dissipada em força exaustiva. O corpo se entregou ao chão, sem esforço, sem força. Alguém me levantou, conduziu minha carne até o banheiro do museu. Me olhei no espelho, não reconheci o reflexo. Vi apenas uma carcaça refletida. O corpo abandonou o organismo revelado pela carne que escorreu junto às ultimas gotas que caíram da mangueira do caminhão-pipa. Não me reconheci, já não estava lá. Havia uma forma refletida no espelho que não era a minha. O vazio. As sensações se compõem com o vazio? Ou seria o vazio ser de sensação? Retornei à forma ulterior de ovo, sem vetores, nem direções, nem ossos, nem estratos, onde a forma não importa e o saber não tem mais fôlego. Um mergulho no ovo, lugar possível de onde nasce a vida inorgânica, rompendo a frágil casca do organismo. Deslimites do vago.
Para ver o vídeo da performance
Para saber mais sobre o trabalho
Ação: Corpo contra conceito
Maria Eugênia Matricardi
Fotos: Thalita Perfeito
Materiais: caminhão pipa, 20 mil litros de água, corpo nu.
Ação realizada por: Maria Eugênia Matricardi, Diego azambuja e Rogério Luiz.
Produção: Corpos Informáticos
Local: área externa do Museu da República
Evento: Performance, corpo, política.
2013.