O que acontece quando um expoente da cruzada antigênero se envolve em escândalos sexuais?
Rogério Diniz Junqueira*
Monsenhor Tony Anatrella é um nome de destaque na galáxia dos “especialistas” antigênero. Sacerdote católico francês da diocese de Paris e psicoterapeuta, ele tornou-se há anos uma referência dos setores ultraconservadores católicos engajados na ofensiva contra o que, na França, chamam de “teoria do gênero” – uma das variações para o que mais comumente se denomina “ideologia de gênero”. O “Psi da Igreja”, como também é conhecido, deve sua notoriedade especialmente à sua oposição virulenta em relação à homossexualidade e a qualquer possibilidade de reconhecimento dela como portadora de direitos.
A penetração de suas opiniões supostamente com bases psicanalíticas rendeu-lhe projeção dentro e fora dos meios religiosos, além de formidável trânsito na Santa Sé, em Roma, onde se tornou conselheiro e membro de diversos dicastérios. No entanto, seu prestígio, como o de outros guardiões da ortodoxia, vê-se ameaçado pelos escândalos sexuais em que se envolveu, cuidadosamente abafados por uma década. No entanto, ultimamente, as autoridades eclesiásticas francesas, diante de fatos novos, acabaram por abrir um processo canônico contra ele. Enquanto isso, as lideranças religiosas e não-religiosas de movimentos e organizações engajadas na “defesa da família”, sempre prontas a acusar feministas e LGBTI de usar o “gênero” para, entre outras coisas, promover a pedofilia, a doutrinação homossexual e procurar tirar dos pais o direito de educarem seus filhos, parecem nada ter a dizer a respeito do caso.
O prestígio de Anatrella enfrentou seu primeiro abalo quando, em 2005 e 2006, surgiram denúncias de que ele teria submetido pacientes, jovens seminaristas e sacerdotes, a uma série de abusos e violências sexuais por meio de suas “terapias corporais”, voltadas a curá-los da homossexualidade. No entanto, em 2007, em virtude do que parece ter sido uma atuação providencial do arcebispo de Paris, o cardeal André Vingt-Trois, outro importante nome da galáxia antigênero e colega de Anatrella nos tempos de seminário, os processos foram prontamente engavetados. Desse modo, com a reputação arranhada, figurando como vítima de calúnias do “lobby gay”, Anatrella pôde seguir com suas controversas atividades profissionais em Paris e Roma. Isso foi possível até que surgiram, dez anos depois, novas e mais consistentes denúncias por parte de outros ex-pacientes, motivados a agir a partir dos escândalos de pedofilia na diocese de Lyon. Diante da forte repercussão midiática, a alta hierarquia eclesiástica francesa viu-se obrigada a tomar providências, tendo que inclusive informar as autoridades vaticanas interessadas, como o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica.
Nascido em 1941, diplomado em Psicologia e ligado aos salesianos, padre Anatrella veio se afirmando, a partir dos anos setenta, por meio de publicações sobre educação de jovens. Desde então, atuava como psicoterapeuta, atendendo mais de uma centena de seminaristas e sacerdotes em dificuldades. Em suas obras, atribuía às transformações sociais ocorridas nos anos sessenta numerosas patologias, pois, segundo ele, ao retirar as travas da pulsão sexual, contribui-se para liberar a sexualidade infantil, aumentar a delinquência sexual e enfraquecer o tabu do incesto.
Nos anos 1980, suas controversas formulações hostis à homossexualidade lhe renderam crescente visibilidade midiática. No entanto, foi no final da década seguinte que o sacerdote psicanalista conseguiu finalmente notabilizar-se por sua oposição ao Pacto Civil de Solidariedade (PaCS). Segundo ele, a homossexualidade seria um refúgio patológico de uma imaturidade narcísica, e o reconhecimento das uniões entre pessoas de mesmo sexo representaria uma ameaça à “ordem simbólica” natural, com dramáticas consequências sociais. Apresentando-se como “especialista” no tema, dotava de presumido verniz científico a posição do episcopado francês, contrário à matéria.
Não menos notórias foram suas participações, durante os anos 2000, nas campanhas contra a adoção do “casamento para todos”, a despatologização da transexualidade e a criminalização da homofobia. Anatrella é apontado como um dos principais autores do documento da Congregação para a Educação Católica que, por encomenda de Joseph Ratzinger, determinou a interdição do acesso de homossexuais ao sacerdócio: a Instrução sobre os Critérios de Discernimento Vocacional acerca das Pessoas com Tendências Homossexuais e da sua Admissão ao Seminário e às Ordens Sacras, de 2005.
Alguns autores consideram que as primeiras ocorrências do sintagma “teoria do gênero” deram-se em artigos seus ao longo desse período. A variante “ideologia de gênero” já se encontrava em circulação desde o fim da década anterior.
Paradoxalmente ou não, quase ao mesmo tempo em que ele enfrentava suas primeiras dificuldades judiciais, Anatrella começou a ser promovido na estrutura institucional da Igreja. Na condição de especialista em homossexualidade” e nos riscos da “teoria do gênero”, passou a integrar o rol de “experts” desde o início mobilizados pelo Vaticano na construção de um discurso antigênero para dar suporte à ofensiva ultraconservadora contra a fantasmagórica “ideologia de gênero”. Desse modo, recebeu o título de monsenhor, enquanto membro da “família pontifícia”, ao ser nomeado consultor do Conselho Pontifício para a Família e do Conselho Pontifício para a Pastoral no Campo da Saúde, além dos encargos a ele atribuídos em outros dicastérios.
Seu nome figura entre os mais de setenta conselheiros do Vaticano e outros “especialistas” atuantes em universidades católicas chamados a Roma para redigir, sob a égide do Conselho Pontifício para a Família, o Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. A obra, que se constituiria na summa teórica da cruzada antigênero, foi publicada em 2003 e logo traduzida em diversos idiomas. Nela, procurou-se fazer das formulações doutrinárias de Karol Wojtyla sobre a mulher e a família (a Teologia do Corpo) um meio para conter o que as autoridades eclesiásticas chamavam de “ideologia da cultura da morte”, subjacente à “ideologia de gênero”.
Essa obra conta com cinco artigos de Anatrella dedicados sobretudo a desferir um ataque contumaz à “teoria de gênero” e à homossexualidade. Assim como os demais artigos da summa, os seus reverberam discursos promovidos no campo do associacionismo pró-vida e das entidades de terapias reparativas da homossexualidade e encontram-se filosoficamente atrelados à Teologia do Corpo e à doutrina professada pela Opus Dei. Em “Homossexualidade e homofobia”, por exemplo, afirma que grupos de pressão operam em favor do reconhecimento legal de casais homossexuais e do direito de adoção valendo-se do “pretexto do direito à diferença”, e que os sistemas sociais e os indivíduos heterossexuais são levados a se sentir culpados frente à homossexualidade, pois até interrogar-se sobre ela equivaleria ao delito de homofobia. Mais uma vez, descreve a homossexualidade como algo sem valor social, um emaranhado psíquico. E como, segundo ele, a institucionalização de direitos nesse tema só pode se dar a partir da “realidade objetiva” do modelo de casal universal, composto por um homem e uma mulher heterossexuais, o reconhecimento de casais de mesmo sexo seria uma atitude eticamente frágil, fruto de uma razão incoerente. E arremata: é preciso deixar de estigmatizar e tachar de homofóbicos quem questiona a homossexualidade em termos sociais e morais.
Desde então, monsenhor Anatrella prosseguiu ativamente na ofensiva reacionária contra o “gênero”, publicando várias obras, dentre elas, o prefácio de uma coletânea do Conselho Pontifício para a Família, Gender: a controvérsia (2011) e o livro A teoria do gender e a origem da homossexualidade (2012). No primeiro, intitulado “A teoria do gênero como um cavalo de Troia”, apresenta a síntese dos argumentos dos inventores do sintagma “teoria do gênero”. No segundo, associa a homossexualidade a essa “teoria”.
Também em 2011, entre outras coisas, publicou o artigo “Depois de Marx veio o gênero”, no Avvenire, um jornal ligado à Conferência Episcopal Italiana, em que afirmava que “as pessoas são iguais em dignidade, porém, as suas escolhas, os seus estilos de vida não têm objetivamente o mesmo valor”. E concluía: “Não há nada de discriminatório em sublinhar que somente um homem e uma mulher formam um casal, se casam, vivem juntos, adotam e educam os filhos no interesse do bem comum e no dos filhos. São os mais capazes de exprimir a alteridade sexual, o casal e a família, célula da sociedade.”.
Na esteira das preparações para a celebração do 50° aniversário da encíclica Sacerdotalis Caelibatus, de 1967, a Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, realizou em fevereiro de 2016 a conferência internacional “O celibato sacerdotal. Um caminho de liberdade”. Seu organizador, mestre de cerimônia e conferencista foi nada menos que o monsenhor Tony Anatrella, que proferiu palestra intitulada “As condições psicológicas de um celibato feliz hoje”.
Ainda no mesmo mês, Anatrella envolveu-se em uma outra controvérsia. Contrariando determinação da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, instituída em 2014 pelo papa Jorge Bergoglio, o monsenhor teria afirmado, em curso de formação de novos bispos, que, para a Igreja, os bispos não têm obrigação de denunciar os abusos sexuais por parte de elementos do clero. Quem deveria denunciar formalmente seriam as vítimas ou seus familiares. A notícia provocou a ira do cardeal norte-americano Sean O’Malley, arcebispo de Boston e presidente da Comissão, que rebateu reafirmando a reponsabilidade moral e ética de denunciar os abusos às autoridades civis. A resposta de Anatrella de que havia sido mal interpretado parece não ter convencido.
Poucos meses antes, o cardeal Vingt-Trois já havia comunicado às autoridades civis francesas da abertura de processo canônico contra o “psicanalista”. A Assinatura Apostólica acatou o pedido do purpurado e determinou a transferência do processo ao Tribunal Ecelesiástico Interdiocesano de Toulouse. Em seu comunicado às autoridades civis, a arquidiocese de Paris informou que padre Anatrella era um sacerdote daquela diocese, envolvido em uma missão de estudos e pesquisas, que não estava exercitando seu ministério e, apenas ocasionalmente, havia dado aulas no Collège des Bernardins, de resto, suspensas.
Por falar em suspensão, como os fatos atribuídos a Anatrella datam de cerca 40 anos, caberá às autoridades vaticanas decidir suspender ou não a prescrição. A Congregação para a Doutrina da Fé, com novo prefeito nomeado em julho deste ano, poderá ser contrária. No entanto, em jogo, parece haver interesses que transcendem o processo por abuso sexual. A decisão final ficará nas mãos de Bergoglio, um habilidoso enxadrista, além de comunicador.
Embora não se possa descartar uma possível intercessão por parte de seus santos protetores, o “Caso Anatrella” não parece ter um desfecho simples. Afinal, além da possibilidade de sua condução se dar ao sabor das disputas de uma corte notoriamente animada por intrigas, discórdias e rivalidades, qualquer que seja o veredito poderá implicar um alto custo político para a Igreja e suas facções. Enquanto isso, as multidões de admiradores do “especialista da teoria de gênero”, autodenominados “defensores da família”, intransigentes arautos da moralidade e dos princípios não-negociáveis, seguem em retumbante silêncio.
*Pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Anísio Teixeira (INEP).
Fontes:
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