por Maria Alícia Gutierrez e Sonia Corrêa*
Na madrugada do dia 30 de dezembro, o Senado argentino aprovou a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) que legaliza o aborto até a 14ª semana de gestação. O Estado argentino reconheceu, assim, a maternidade como um direito e não uma obrigação, garantindo a liberdade de decisão reprodutiva e interrompendo a tragédia da morbidade e da mortalidade resultante do aborto clandestino e inseguro, de que são vítimas especialmente os grupos mais vulneráveis das nossas sociedades.
Esta conquista deve-se à persistência e à tenacidade do movimento feminista argentino, em luta que remonta aos primórdios da democratização, nos anos 1980. Nesse trajeto, um momento-chave foi a criação, em 2005, da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal Seguro e Gratuito, de alcance nacional, perfil plural e guiada por regras democráticas. Seu slogan sempre foi: “Educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer“.
Desde 2009, a Campanha apresentou sete projetos para legalizar o aborto. Em 2020, contudo, foi o próprio Poder Executivo que levou ao Congresso uma proposta de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) vinculada à Lei dos 1.000 Dias, que garante assistência médica e proteção social às mulheres grávidas e aos dois primeiros anos de vida das crianças. Combinadas, essas duas iniciativas legislativas associam a liberdade de decisão com políticas de cuidado no âmbito da reprodução biológica e social.
O Poder Executivo não teria, porém, tomado esta iniciativa não fosse o amplo e diverso conjunto de lutas que precederam este passo. Foi crucial, por exemplo, vincular organicamente a luta pelo direito ao aborto com a Campanha Nem Uma a Menos e com as Greves Internacionais das Mulheres. Foram também vitais as alianças negociadas, não sem dificuldades, com outros movimentos sociais, o trabalho sistemático com profissionais de saúde e as estratégias feministas de informação e acesso ao aborto farmacológico.
A vitória do dia 30 de dezembro de 2020 é, sobretudo, tributária de uma abertura inédita às novas gerações e do sólido reconhecimento das interseções de gênero, sexualidade, classe, raça/etnia. A comunicação contínua e os laços cada vez mais fortes com os feminismos latino-americanos e globais também foram fundamentais. Foi tudo isso junto que fez da Maré Verde a imagem que a Argentina projeta, hoje, ao mundo.
Não menos importante, a aprovação da nova lei deve ser comemorada como derrota das forças que repudiam o gênero, o direito de decidir e os direitos LGBTQI, as quais têm sido também um combustível que alimenta as dinâmicas de desdemocratização que assistimos nas Américas, mas também na Europa, ao longo da última década.
A Lei da IVG é, portanto, uma vitória exemplar. Mas a tarefa não está terminada. No plano nacional, trata-se agora de garantir sua regulamentação e implementação. E, para além das fronteiras, é preciso compartilhar, amplamente, a experiência e as lições aprendidas na Argentina, de maneira a inspirar lutas e novas vitórias legais em outros contextos, como, por exemplo, no Brasil.
* Maria Alícia Gutierrez é docente e investigadora da Faculdade de Sociologia da Universidade de Buenos Aires e integrante da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito.
* Sonia Corrêa é pesquisadora da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW).
Este artigo foi originalmente publicado pelo suplemento Celina, do jornal O Globo.
Imagem: Ronaldo Schemidt / AFP