por Sandra Bazzo e Paula Guimarães*
Em março de 2009, a menina de Alagoinha (PE), de 9 anos, realizou o aborto legal depois de ter diagnosticada gravidez gemelar, resultante de abuso sexual pelo padrasto. Dez anos depois, em 2019, o destino de pelo menos três meninas de até 10 anos, que engravidaram de abusos sexuais no Brasil, não teve o mesmo desfecho. Crianças, e por isso com peculiar desenvolvimento físico e emocional, duas negras e uma branca, foram obrigadas a levar a gravidez até o fim e, provavelmente, a exercerem a maternidade de forma compulsória.
Os casos que aconteceram em Capitão Poço e Ourilândia do Norte, no Pará, e Seara, em Santa Catarina, fazem parte das estatísticas de nascidos vivos do DataSUS, do Ministério da Saúde. São crianças que tiveram suas infâncias sequestradas, sob vistas grossas do Estado, em um ciclo de perpetuação de violações sem data para terminar. Enquanto o Código Civil proíbe o casamento de menor de 16 anos, o preenchimento do estado civil de uma delas como “casada” no banco de dados do SUS revela a falha do Estado e da sociedade em velar pela dignidade da criança e do adolescente, colocando-os a salvo de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Em agosto de 2020, a saga da menina de dez anos, no Espírito Santo, para fazer um aborto legal, após ter sido engravidada pelo tio que a violentou sistematicamente por anos, reacendeu o debate e apontou para uma realidade silenciada no Brasil. Vivemos no país que é líder em números absolutos de gravidez infantil forçada entre os latino-americanos. De 1994 a 2019, 675.180 bebês nasceram de meninas de até 14 anos no Brasil, uma média de 26 mil nascimentos por ano, de acordo com o DataSUS.
São casos semelhantes ao de Mainumby, uma menina paraguaia de 10 anos que engravidou de um estupro praticado pelo parceiro de sua mãe. A gravidez foi descoberta porque a menina deu entrada no hospital com dores de estômago e suspeita de parasitose, em 21 de abril de 2015. Mainumby foi obrigada a levar a termo a gestação. Hoje, a mãe criança e a filha vivem aos cuidados dos avós.
Foi a partir do caso Mainumby que o Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem) elaborou, em 2016, o estudo “Niñas Madres. Balance Regional embarazo y maternidad infantil forzados en América Latina y el Caribe”. Diante das violações sofridas por Mainumby e sua mãe, o Cladem submeteu o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, exigindo seu pronunciamento e apoio através de uma Medida Cautelar.
A flagrante violação dos direitos das meninas, revelada no diagnóstico em 14 países, foi denunciada na campanha internacional #EmbarazoInfantilForzadoEsTortura (gravidez infantil forçada é tortura). Todos os anos, dezenas de milhares de meninas na América Latina e no Caribe engravidam contra sua vontade. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), essa é a segunda região do mundo com maior prevalência de maternidade infantil, depois da África – onde em alguns países a gravidez está associada ao casamento infantil. Na faixa etária de 15 a 19 anos há uma incidência importante das gravidezes devido à iniciação sexual precoce. Todavia, na América Latina e Caribe, até os 14 anos, a maioria das gravidezes de crianças decorre de violência sexual, exercida por membros da família (abuso sexual incestuoso), conhecidos, vizinhos ou estranhos.
Das 55.499 mulheres vítimas de estupro em 2019, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, 70% delas são crianças de 0 a 14 anos. Ainda que no Brasil, para além do dever de proteção integral às crianças e adolescentes, a legislação garanta o aborto legal para as meninas, diferente de muitos países da América Latina cujas leis são mais restritivas, na prática esse direito tem sido violado. Para se ter uma ideia da dimensão da omissão, em 2018, foram realizados 62 abortos realizados por razões médicas em meninas de 10 a 14 anos, enquanto o número de nascidos vivos de mães de até 14 anos foi de 21.172, conforme o DataSUS. Ou seja, os dados sugerem que, apesar do permissivo legal, o Estado brasileiro não garante acesso ao procedimento a meninas e adolescentes, descumprindo deveres internacionais a que se obrigou.
Essa realidade ocorre num país que criminaliza a conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, conforme consta no Código Penal, art. 217-A. Logo, os números de nascidos vivos de mães menores de 14 anos deveriam corresponder ao equivalente de inquéritos instaurados visando processar e julgar os agressores por estupro de vulnerável, considerando que é obrigatória a notificação de todo caso suspeito ou confirmado de violência contra crianças e adolescentes (Lei n.º 8.069/1990, art. 13). Porém, não há transparência na divulgação desses dados, assim como no acesso a contraceptivos de emergência e aborto legal, dificultando estudos e a adoção de políticas públicas adequadas.
No Brasil, gravidez e maternidade infantil forçada são termos raramente usados, adotando-se as expressões gravidez na adolescência ou precoce, que invisibilizam a violência sexual de crianças. A Lei n.º 13.798, sancionada em janeiro de 2019, acrescenta um artigo ao Estatuto das Crianças e Adolescentes instituindo 1º de fevereiro como o início da Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência (BRASIL, 2019). Em 2020, à exceção da tentativa de fomentar a abstinência sexual com estratégia única de prevenção e promoção de saúde, pouco se fez.
Em ação contínua, ainda em 2019, foi lançado o informativo Gravidez Informacional na Adolescência: Impacto na Vida das Famílias e Adolescentes e Jovens Mulheres, que aborda a questão do ponto de vista familiar, assistencial e como um problema de saúde pública na medida em que acarreta um aumento dos nascimentos prematuros. De acordo com o boletim, “no Brasil, um em cada cinco bebês nasce de uma mãe entre os 10 e os 19 anos”. Refere ainda que, entre as “causas do abandono escolar, 18% correspondem à gravidez na adolescência”.
No caso da maternidade infantil forçada, a porcentagem de gestações decorrentes de violência sexual, muitas vezes incestuosa, é muito alta. Meninas de 10, 11 e 12 anos engravidam, e a gravidez ocorre em silêncio, na maioria dos casos ignorada pela família. Essas meninas deixam de receber atenção médica e, frequentemente, não têm apoio emocional, num momento em que ambos são prioridades.
O fato de uma menina engravidar não significa que ela possa gestar um bebê com segurança. Os riscos e doenças associados à gravidez são potencializados quando as gestantes são meninas, que têm quatro vezes mais probabilidade de morrer por causa da gravidez do que as mulheres entre 20 e 30 anos (CLADEM, 2016). No mundo, o risco de morte materna é duplicado em mães com menos de 15 anos em países de baixa e média renda.
A violência sexual, a gravidez e a maternidade infantil forçada são fenômenos sociais graves e que precisam ser visibilizados. Neste país, a contingência colocada pela pandemia tornou ainda mais tortuoso o acesso aos direitos já tão atrelado a concepções morais, éticas, ideológicas e culturais dos profissionais e dos gestores da saúde, bem como do sistema de justiça. Em um esforço para entender essa realidade na ponta e incidir sobre ela, o Cladem, em parceria com a Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice – GDC/Brasil), lançou um chamado para profissionais de saúde que atuam nos serviços de atendimento a vítimas de violência sexual, principalmente nos casos que resultam em abortamento legal, para relatarem suas experiências durante a pandemia. Os textos selecionados irão compor a publicação de uma obra coletiva virtual que possa ser utilizada como fonte de pesquisa para profissionais engajadas na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das meninas e mulheres no Brasil.
As instituições não podem se omitir considerando o imenso arcabouço normativo nacional e internacional. Médicas/os, enfermeiras/os, psicólogas/os, assistentes sociais, e outras/os profissionais dos serviços de acolhimento devem ser sensibilizados a atuar em conformidade com tais parâmetros normativos nacionais e internacionais, para não negligenciar na assistência em saúde a meninas grávidas como se isso fosse um fato normal. A sociedade brasileira tem uma dívida histórica com as meninas que precisa ser urgentemente reparada. Não é mais admissível que continuemos seguindo a cartilha da dominação masculina e dominação patriarcal, pois meninas são também exploradas sexualmente.
Tarda a hora de reduzir o sofrimento destas meninas, que em sua maioria são empobrecidas, com baixa escolaridade, negras, indígenas ou miscigenadas, sem conhecimento ou sem acesso aos seus direitos que são vergonhosamente violados. A gravidez e a maternidade infantil forçada potencializam a exclusão social, a vulnerabilidade e obstaculizam o pleno e harmonioso desenvolvimento de meninas.
*Sandra Lia Bazzo é co-coordenadora do Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem Brasil)
**Paula Guimarães é cofundadora do Portal Catarinas
Matéria originalmente publicada no suplemento Celina, do jornal O Globo, no dia 1 de fevereiro de 2021.