Se, como fez minha amiga Fernanda Miguens, você for procurar a palavra assédio no dicionário (também adoro dicionários, Fernanda) vai encontrar como primeira definição: “operação militar, ou mesmo conjunto de sinais ao redor ou em frente a um local determinado, estabelecendo um cerco com a finalidade de exercer o domínio.” Se depois disso você consultar a hasthag #primeiroassedio, vai encontrar uma explosão de depoimentos de mulheres contando a primeira vez em que foram dominadas, subjugadas, encurraladas, numa operação masculina de poder sobre seus corpos, sentimentos, prazeres.
Como surgiu, inicialmente, em forma de solidariedade a Valentina, uma menina de 12 anos, a grande maioria dos relatos é de histórias de infância e adolescência que vão do padrasto violento ao anônimo na rua, do primo mais velho ao amigo do pai, do chefe ao amigo na escola, do ginecologista ao dentista, do tio ao vizinho. Para muitas – para mim, inclusive –, o primeiro talvez nem seja possível contar, mas a memória vai trazendo cenas, imagens, rostos anônimos ou apagados pelo trauma. Para outras, a narrativa vai reconstituindo aquilo que há muito estava recalcado, e a campanha tem a beleza de trazer à tona sem apelar para a vitimização, como tão bem lembrou a minha amiga Bia Dias, para a falsa moral ou para qualquer tipo de discurso piegas sobre como sofremos.
A beleza dos relatos está principalmente no espanto de quem conta, pela coragem de contar, de lembrar, e principalmente por perceber que há tantas de nós com experiências semelhantes. A imensa rede de histórias coincidiu com dois fatos inéditos: a redação do Enem tinha como tema a violência contra a mulher, a mesma violência que as redes estavam fazendo eclodir, e uma das questões era dedicada à filosofia da francesa Simone de Beauvoir, motivo de tantas manifestações contrárias que só serviram para confirmar a importância da campanha #primeiroassedio. Entre a ridícula moção de repúdio da Câmara Municipal de Campinas e as declarações dos preconceituosos de sempre – melhor não mencionar seus nomes – houve também um assédio a Beauvoir, chamada de “a baranga francesa” por um homem que pretende ser, pelo cargo de procurador, representante do sistema judiciário.
Conforme os relatos de #primeiroassedio foram brotando de todos os lugares, houve um efeito também nos homens, entre envergonhados e desdenhosos, entre emocionados com as descobertas das violências sofridas por suas parceiras e espantados com a quantidade de pares que, embora sejam homens como eles, tenham de fato achado que podiam dispor do corpo das mulheres sob a forma da submissão. Esta explosão espontânea foi ganhando adesões por todos os cantos, como que a nos revelar o quanto, historicamente, nosso corpo não nos pertence; não é corpo, é coisa, é coisa na mão do outro que te domina, como na operação militar descrita no dicionário, como no silêncio que muitas de nós carregamos há 10, 20, 30, 40, 50 anos. Silêncio por vergonha, vergonha por culpa, como se ter um corpo feminino justificasse a agressão, a violência, a dominação, a coisificação. Cada uma que conta o seu #primeiroassedio também se dá conta do processo pelo qual passou para deixar de ser coisa na mão do outro e tornar-se mulher pelas suas próprias mãos. Para as jovens, espanta a surpresa de cada uma com o assédio da amiga, como neste vídeo, cujo argumento é ao mesmo tempo simples e poderoso: não podemos nos calar.
Pelas contas do Think Olga, coletivo que propôs a campanha, já foram 82 mil tweets sob a marca do #primeiroassedio. Em grande medida, a campanha tem o mérito de ter feito com que muitas de nós tenhamos ressignificado como assédio alguma violência pela qual nos sentíamos de alguma forma responsáveis. Mas além de lembrar do primeiro, ou por ter lembrado do primeiro – a ordem aqui não importa – talvez estejamos todas agora implicadas na tarefa de denunciar também o último, no sentido de o mais recente, o que te incomodou ontem, hoje de manhã, semana passada.
O assédio sexual e moral contra as mulheres continua a existir nos menores gestos cotidianos, no marido que levanta a voz contra a mulher com quem é casado, no cara que olha para bunda de uma mulher na rua, no chefe que te olha de cima a baixo quando você chega para a reunião, na piada de péssimo gosto que disfarça sua violência em forma de humor. E se pudemos falar do #primeiroassedio e envergonhar tantos homens, então é porque daqui em diante podemos também falar todos os dias do assédio que fere hoje, agora, na esperança de que contra o assédio – sexual e moral – cada uma de nós possa continuar se constituindo como mulher, enfrentando aquele que pretende nos reduzir a uma coisa. Para retomar a metáfora militar do assédio como exercício de domínio, se essa é uma guerra, nossos corpos são o nosso território a ser retomado, ocupado por quem escolhermos.
Se além de toda a força das narrativas individuais, ainda pudermos direcionar essa potência para mover um motor político – como nas manifestações de mulheres #foracunha espalhadas pelas capitais na última semana, em protesto contra o projeto de lei que destroi os avanços no aborto para as vítimas de estupro –, talvez também possamos afirmar que este é o último assédio, porque não aceitaremos mais nenhum outro, seja do Estado, do companheiro, do desconhecido, do amigo, do médico, do policial. É quando virá o dia em o #primeiroassedio encontrará seu sentido no #ultimoassedio.