Dia 25/8/09 – tarde
Depois da conferência e debate sobre o texto panorâmico elaborado por Juan Marco Vaggione, seguiu-se o painel que contou com a participação de: Jaris Mujica, professor da Universidade Católica do Peru e da Universidade Cayetano Heredia; reverendo Elias Vergara, pastor da Igreja Anglicana do Brasil; Fernando Sefner, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e Maria Luiza Heilborn, professora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e co-coordenadora do CLAM. Foram comentaristas deste painel Margareth Arilha, secretária executiva da Comissão de Cidadania e Reprodução, e Veriano Terto Jr., coordenador geral da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA). A sessão foi coordenada por Horácio Sívori, pesquisador do CLAM.
Jaris Mujica apresentou os resultados de uma pesquisa que investigou a estrutura e ação dos grupos católicos conservadores do Peru e que identificou suas principais agrupações, formas de articulação interna e externa, dispositivos e argumentos discursivos, estratégias que adotam em relação a grupos pró-direitos sexuais e reprodutivos, bem como perfil e trajetória de suas lideranças. Os achados informam que os/as conservadores/as católicos/as peruanos/as estabeleceram, em anos recentes, relações íntimas com a política formal e incidem sobre o debate democrático com força inusitada.
Suas estratégias também se alteraram significativamente. No passado, baseavam-se nas premissas de tradição religiosa, coesão familiar e defesa da propriedade e eram desenhadas para ações no campo social e cultural e nos planos locais e nacionais. Hoje, embora a visão moral seja a mesma, esses grupos se globalizaram e se politizaram. Assim, a pesquisa revela, por exemplo, que existem conexões orgânicas entre grupos tão díspares quanto o Opus Dei e Sodalicio de la Vida Cristiana – diretamente vinculados à Igreja Católica – e grupos internacionais da sociedade civil como o Population Research Institute (PRI) ou a Aliança Latino-americana para a Família (ALAFA).
Sobretudo, esses setores têm penetrado sistematicamente na política estatal e mobilizam ações de natureza legislativa e jurídica. Sua meta é modificar o comportamento e as práticas cotidianas dos atores a partir da lei. Ou seja, já não se trata de colonizar o estado como acontecia no passado. Trata-se de alterar as normas legais, para garantir uma plataforma de ação ampla que, deve-se dizer, também é fundamentada na democracia e nos direitos. O novo terreno de ação política desses grupos é, de fato, o domínio do biopoder e, por essa razão, seus discursos e estratégias se concentram sobre o significado e interpretação do conceito de “vida”.
O reverendo Elias Vergara deslocou o foco de análise para o próprio campo religioso e propõe uma reconstrução do mito do Jardim do Éden. Nessa versão reconstruída a expulsão do paraíso não é interpretada como queda mas sim como liberação ou encontro como o desejo. Fora do Jardim Adão e Eva fizeram sexo e dessa relação de amor nasceu seu primeiro filho. Antes do desejo, a vida de Eva e Adão era ‘sem graça’, estando nus na presença um do outro, nada sentiam. Essa castração era um efeito obediência cega imposta por Javé. Ficar no Jardim significava ‘morrer’, a vida plena estava fora dos limites do Éden. Portanto rebelião de Adão e Eva deve ser interpretada positivamente.
Mas, Vergara assinalou também que não é possível fazer essa interpretação positiva quando estamos apegados a uma lógica dogmática que vê na serpente o demônio, ou seja, uma oposição a Javé. Entretanto, disse ele, da mesma forma em que o jardim pode ser interpretado como confinamento, a serpente pode e deve ser vista simplesmente como um deus concorrente. O mito reconstruído do Jardim visa transmitir a idéia de que, quanto mais hegemônica e totalitária é a postura de qualquer instituição, sempre existe a possibilidade de romper com esta lógica e, muitas vezes, é preciso fazê-lo. Viver na lógica do Jardim ou romper com essa lógica: esse é o grande desafio humano.
O reverendo também sublinhou que no discutir religião e sexualidade é importante refletir sobre o encontro entre o sagrado e o humano que, segundo ele, está em franca transformação. São exemplos: a entrada das mulheres no sacerdócio, mas também as discussões que têm transcorrido, desde algum tempo, no campo religioso, sobre sexualidade, direitos reprodutivos e gênero. Vergara finalizou afirmando que, a partir dessa perspectiva teológica renovada, as paradas do orgulho LGBT são também um espaço do sagrado, pois podem ser interpretadas como uma grande celebração religiosa do culto ao amor, o amor que não tem barreiras, ou pelo menos se propõe a vencer todas elas.
Fernando Seffner, por sua vez, retomou idéias desenvolvidas no texto panorâmico, sugerindo que devemos abandonar a lógica simplista que concebe a religião como atraso, moralidade tacanha e negação da ciência e a modernidade como avanço, ciência e iluminismo. Lembrou que, no Brasil, setores católicos progressistas contribuíram para a defesa dos direitos humanos durante a ditadura e, nos dias atuais, a Igreja Universal faz campanhas de distribuição de preservativos nas suas bases e missões em países africanos.
Da mesma forma, ele considera problemático sustentar, hoje, a posição clássica de que a religião pertence ao foro íntimo, à esfera individual e não tem lugar legítimo na política. E trouxe um exemplo negativo e um exemplo positivo par ilustrar essa afirmação. Num estudo conduzido no estado de São Paulo, verificou-se que juizes de família realizam audiências de conciliação que não são solicitadas pela lei quando um casal se apresenta para solicitar o divórcio. Esse achado revela o quão profundamente as crenças religiosas e os dogmas cristãos penetram no judiciário. Em contraste, pesquisa realizada pela ABIA, intitulada “Respostas religiosas à AIDS no Brasil”, identificou uma instituição católica cujos dirigentes elaboraram um texto teológico sobre prevenção. Nesse espaço, a camisinha não é distribuída – porque a “distribuição” é proibida –, mas é sempre disponibilizada.
Fernando avaliou, portanto, que é urgente politizar o fenômeno religioso, abandonando a crítica negativa restrita do pensamento político convencional sobre religião. Adicionalmente, lembrou que uma vasta literatura está hoje disponível para informar que, no Brasil, as pessoas crentes são cada vez mais autônomas em suas decisões, face às hierarquias, doutrinas e dogmas religiosos. Essa autonomia crescente dos sujeitos religiosos pode, eventualmente, oxigenar a discussão sobre laicidade, de modo a não sermos capturados por visões rígidas e simplistas acerca das interseções entre sexualidade, religião e política.
Já Malu Heilborn tratou da questão do aborto como tema crucial da biopolítica, como questão que é predominantemente debatida a partir de argumentos fisicalistas quanto ao significado da vida. Citando Paola Tabet, ela assinalou que é inviável sustentar, nos tempos atuais, a defesa sistemática da fecundidade natural. Em todas as sociedades, o aborto é prática mais ou menos generalizada. E, embora o produto de uma gestação seja construído como “vida” e investido de significados por certos atores, em muitos contextos e culturas a gestação é percebida apenas como um sangue retido no corpo feminino, é regra atrasada que “desce” após certos procedimentos. Isso significa que não há uma definição ou verdade absoluta e única sobre aborto, como pretendem os grupos religiosos para quem a vida começa na concepção.
Em seguida, Malu chamou atenção para o fato que hoje os grupos religiosos usam cada vez mais o discurso científico para embasar as suas proposições morais sobre o que é vida. Essa estratégia tem sido bem sucedida, entre outras razões, porque as novas tecnologias reprodutivas que possibilitam a visualização da vida intra-uterina infundem um sentido de realidade e materialidade em algo que até muito recentemente era invisível e opaco. A visualização da vida fetal produz uma “antecipação da vida” que anteriormente só ocorria a partir do nascimento. O cenário é paradoxal. Por um lado, novas tecnologias são bem-vindas porque garantem o desenvolvimento saudável da gestação. Por outro, imprimem estatuto de verdade e produzem a individualização de um conjunto de células que, de fato, até um determinado momento da gravidez são inteiramente dependentes do corpo da mulher.
O que está em jogo, portanto, é a tensão entre o corpo materno como abrigo e a crescente individualização do feto como pessoa. Malu lembrou ainda que Elizabeth Badinter, em Rumo Equivocado, já havia chamado atenção para o fato de que as feministas teriam levado longe demais a reivindicação “nosso corpo nos pertence”. Segundo Badinter, essa posição está em contradição com os direitos potenciais de um indivíduo a vir a se constituir e também, com o direito dos homens à paternidade. Finalmente, Malu lembrou que nossas conversações sobre o tema da vida como questão central da biopolítica contemporânea deveria se estender para os outros temas árduos desse campo debate: a eutanásia, a morte digna e o suicídio.
Veriano Terto, primeiro debatedor, fez comentários específicos e pontuais sobre cada um dos textos apresentados. Comentando as reflexões de Jaris Mujica, lembrou que no Brasil e em outros países latino-americanos padres e pastores evangélicos fazem trabalho radical de apoio à “vida” em outro sentido, por exemplo, impedindo que pessoas, inclusive pessoas HIV positivas, sejam julgadas e assassinadas por traficantes em comunidades onde o estado não está presente. Da mesma forma, no plano dos debates nacionais e globais sobre acesso a medicamentos, as igrejas e grupos religiosos têm sido muito mais ativas em contestar os sistemas de propriedade intelectual.
Segundo Veriano, em várias circunstâncias, as pessoas vivendo com HIV e o próprio movimento de AIDS conta com mais apoio das igrejas e setores religiosos do que do estado ou de setores laicos e liberais; e é importante refletir sobre esses exemplos porque eles implicam em dilemas políticos no que diz respeito a nossas estratégias e alianças políticas.
Comentando o texto apresentado pelo reverendo Vergara, Veriano observou que seria interessante repensar a questão dos mitos para além do cristianismo, pois há outras mitologias em que representam a sexualidade de maneira mais positiva do que a bíblia.. No caso do Brasil, por exemplo, seria fundamental resgatar os discursos sobre sexualidade na tradição afro-brasileira e indígena. Finalmente, pontuou que, ao falar de sexualidade como êxtase, o reverendo recuperava, de algum modo, os discursos e propostas sobre sexualidade dos anos 1970, quandose fazia sexo para alcançar alguma coisa mais que o sexo, uma perspectiva radical que praticamente desapareceu, particularmente depois da AIDS.
Quanto às reflexões acerca do aborto elaboradas por Malu, Veriano lembrou que a questão do aborto foi e continua sendo importante para as mulheres HIV positivas, pois – ao contrário das mulheres que são impedidas de interromper uma gravidez – elas são, com freqüência, induzidas ao procedimento. Finalmente, ponderou que a experiência da AIDS ensina que, tão importante quanto refletir sobre os dilemas acerca do início e o fim da vida, são os compromissos com as possibilidades e direitos que temos “durante” a vida.
Em seguida, Margareth Arilha apresentou os seus comentários, encerrando o painel. Reagindo aos trabalhos apresentados por Vergara e Seffner, a comentarista ressaltou que, mesmo quando reconhecemos as contradições e a pluralidade do campo religioso, não podemos esquecer que toda e qualquer instituição religiosa, seja mais ou menos progressista, tem um projeto de poder. Nesse sentido, ressaltou que é fundamental explicitar sempre quais são esses projetos e analisar criticamente seus efeitos potenciais sobre os processos de construção democrática que consideram os direitos sexuais e reprodutivos inegociáveis.
Ao comentar a análise de Jaris Mujica sobre o contexto peruano, Margareth pontuou que o mesmo se passa no Brasil, onde também assistimos a crescente penetração legal e institucional das pautas conduzidas pelos grupos religioso ultra conservadores. Um exemplo evidente, segundo ela, é a seqüência de iniciativas municipais destinadas a bloquear o acesso a anticoncepção de emergência, as quais reproduzem um padrão encontrado em outros países da região. Além disso, essas mesmas forças estão mais que ativas no Congresso Nacional, como pode ser verificado na enxurrada de projetos leis absolutamente regressivos em relação ao aborto.
Com relação à análise e aos argumentos desenvolvidos por Malu Heilborn, Margareth enfatizou que o aborto não é apenas um problema das feministas ou das mulheres, mas que deveria ser visto como uma questão que afeta a todos e todas. Em suas próprias palavras, trata-se de um “problema” que diz respeito à humanidade. Finalmente, sugeriu que a análise de Malu incorporasse as experiências recentes de reforma legal em Portugal, na Colômbia e no México. Margareth concordou ainda que a tecnologia de visualização “antecipa a vida” e cria novos desafios para o debate sobre legalização do aborto, mas considera que essas vitórias recentes que se deram em contextos políticos difíceis e complexos, devem ser valorizadas, pois indicam que os ganhos são possíveis, mesmo quando são muitos os obstáculos.