por José Eustáquio Diniz Alves *
O papa Francisco é mestre em soltar balões de ensaio. Diante das dificuldades para mudar a doutrina ortodoxa da igreja, talvez em decorrência das estruturas enrijecidas por cerca de 2 mil anos de dogmas e história, parece ser realmente muito mais fácil lançar algumas ideias heterodoxas em pequenas doses para ver se colam. O papa Francisco tem utilizado as entrevistas no avião papal para fazer seus experimentos.
Na volta da viagem que fez às Filipinas, em janeiro de 2015 – onde apoiou a posição conservadora da igreja local contra o livre direito de acesso aos métodos contraceptivos – o papa Francisco, disse no avião de volta à Roma, que os católicos não precisam se reproduzir “como coelhos” e devem, ao invés disso, ser “responsáveis”. Mas logo depois, no Vaticano, pressionado, disse: “Sinto alegria de ver tantas famílias numerosas que acolhem tantas crianças que são dons de Deus. Todo filho é uma bênção”.
Na volta da viagem que fez ao México em fevereiro de 2016, em meio ao surto da epidemia de zika, o papa Francisco, no avião de volta à Roma, se referiu à possibilidade de os cristãos usarem métodos contraceptivos “como um mal menor” diante do risco que o vírus da zika impõe sobre as grávidas. Francisco também lembrou que o papa “Paulo VI em uma situação difícil na África (a guerra no Congo belga) permitiu que as freiras usassem anticoncepcionais para casos nos quais foram violentadas”.
Em relação ao aborto o pontífice afirmou que “o aborto não é um mal menor: é um crime. É eliminar um para salvar o outro. É o que faz a máfia”. Mas, em seguida, voltou a afirmar que “evitar a gravidez não é um mal absoluto”.
Parece que o papa está utilizando as definições do catecismo da igreja católica que faz uma distinção entre “pecado venial” e “pecado mortal”: o primeiro entende-se como “aquele ato que não separa o ser humano totalmente de Deus, mas que fere a Comunhão com o Criador”: já o segundo (pecado mortal), “atenta mais gravemente contra o Amor de Deus, desviando o ser humano de sua finalidade última e da Bem-aventurança, excluindo-o do estado de graça”. O catecismo ensina que: “É pecado mortal o que tem por objeto uma matéria grave, e é cometido com plena consciência e de propósito deliberado”.
Portanto, parece que o papa Francisco está dizendo, de maneira não muito clara, que o uso de contraceptivos é um “pecado venial” e o aborto é um “pecado mortal”. Um é mal relativo e o outro é mal absoluto. Acontece que o documento “Humanae Vitae: Carta Encíclica de Sua Santidade o Papa Paulo VI sobre a Regulação da Natalidade” afirma que o matrimônio (“instituição sapiente do Criador”) é um sacramento indissolúvel realizado com finalidade generativa e evitar filhos seria uma falha grave. Para compreender é preciso saber o que a Encíclica Humanae Vitae diz Sobre o amor conjugal:
“O amor conjugal exprime a sua verdadeira natureza e nobreza, quando se considera na sua fonte suprema, Deus que é Amor, ‘o Pai, do qual toda a paternidade nos céus e na terra toma o nome’. O matrimônio não é, portanto, fruto do acaso, ou produto de forças naturais inconscientes: é uma instituição sapiente do Criador, para realizar na humanidade o seu desígnio de amor. Mediante a doação pessoal recíproca, que lhes é própria e exclusiva, os esposos tendem para a comunhão dos seus seres, em vista de um aperfeiçoamento mútuo pessoal, para colaborarem com Deus na geração e educação de novas vidas” (p.3).
Sobre as características do amor conjugal a encíclica Humanae Vitae diz:
“É, antes de mais, um amor plenamente humano, quer dizer, ao mesmo tempo espiritual e sensível” (…) “É depois, um amor total, quer dizer, uma forma muito especial de amizade pessoal, em que os esposos generosamente compartilham todas as coisas, sem reservas indevidas e sem cálculos egoístas” (…) “É, ainda, amor fiel e exclusivo, até à morte” (…) “É, finalmente, amor fecundo que não se esgota na comunhão entre os cônjuges, mas que está destinado a continuar-se, suscitando novas vidas. “O matrimônio e o amor conjugal estão por si mesmos ordenados para a procriação e educação dos filhos. Sem dúvida, os filhos são o dom mais excelente do matrimônio e contribuem grandemente para o bem dos pais” (p. 3 e 4, ênfase do autor).
Desta forma, percebe-se que a doutrina da igreja católica diz claramente que o matrimônio é um dom divino e tem finalidade procriativa, pois os filhos são uma “intenção criadora de Deus”. Além disso, a encíclia Humanae Vitae, trata também da “paternidade responsável” (embora não fale da maternidade responsável), que significa o “domínio da razão” em relação “às tendências do instinto e das paixões”. O texto da encíclica parece abrir espaço para a regulação da fecundidade, se houver motivos graves:
“Em relação às condições físicas, econômicas, psicológicas e sociais, a paternidade responsável exerce-se tanto com a deliberação ponderada e generosa de fazer crescer uma família numerosa, como com a decisão, tomada por motivos graves e com respeito pela lei moral, de evitar temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um novo nascimento” (p. 4).
Mas a encíclica deixa claro, que fora os casos excepcionais, os casais (heterossexuais naturalmente) não devem agir pelo “próprio bel-prazer”, mas devem obedecer aos desígnos natalistas de Deus:
“Na missão de transmitir a vida, eles não são, portanto, livres para procederem a seu próprio bel-prazer, como se pudessem determinar, de maneira absolutamente autônoma, as vias honestas a seguir, mas devem, sim, conformar o seu agir com a intenção criadora de Deus, expressa na própria natureza do matrimônio e dos seus atos e manifestada pelo ensino constante da Igreja” (p.4 grifo nosso).
Parece, portanto, que a encíclica Humanae Vitae considera a contracepção (especialmente os métodos artificiais de regulação da fecundidade) um pecado mortal, pois vai contra a “intenção criadora de Deus” e como diversas autoridades católicas disseram durante a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD, do Cairo, de 1994) a queda das taxas de fecundidade significam uma implosão populacional, um “inverno demográfico” ou ainda mais sério, um “suicídio demográfico” (Alves, 2000).
Porém, a Taxa de Fecundidade Total (TFT) no mundo, atualmente, está em 2,5 filhos por mulher, segundo dados da Divisão de População da Onu. Na América Latina está ao redor de 2 filhos por mulher e nos países católicos desenvolvidos a TFT está bem abaixo do nível de reposição. Inclusive na Itália. Ou seja, a família pequena é a regra atual. Isto significa que os católicos estão incorrendo em um “pecado mortal”? Ou apenas “pecado venial”?
São estas questões que o papa Francisco precisa esclarecer de forma direta. Qual é a posição atual da Santa Sé sobre a encíclica Humanae Vitae, lançada pelo papa Paulo VI, em 1968? Com a igreja encara a equidade de gênero? Por que ser contra a família plural, diversa e pequena? Por que condenar os celibatários? Por que discriminar as pessoas que não querem um casamento formal e/ou ter filhos?
Existem setores da igreja que são a favor de rever as posições da Santa Sé contra os direitos sexuais e reprodutivos. Em editorial de 23 de janeiro de 2015, a revista National Catholic Reporter afirma que a encíclica Humanae Vitae tem sido um sério impedimento à autoridade católica e que o seu texto criou um abismo entre os prelados e os padres, entre a hierarquia e os fiéis. Ou seja, segundo setores da própria igreja Católica, há um clamor para rever a doutrina e as práticas e dogmas do Vaticano sobre a reprodução humana. Por exemplo, o aborto decorre de uma gravidez indesejada, em função de alguma falha contraceptiva. Portanto, para evitar o aborto seria preciso aumentar a eficiência da contracepção. Na lógica racional da hierarquia teológica, não só os métodos naturais, mas também a esterilização (masculina e feminina), o uso da camisinha e os demais métodos modernos de regulação da fecundidade seriam úteis para se evitar a gravidez indesejada e a possibilidade de interrupção da gravidez.
O papa Francisco bem que poderia elaborar uma nova encíclica sobre família e reprodução, ao invés de lançar torpedos aéreos que parecem contraditórios e sem muita consistência. Para garantir a liberdade e evitar tanta confusão, bastaria uma encíclica curta, mais ou menos com os seguintes dizeres:
“É dever de todas as pessoas fazer o bem e evitar o mal. Qualquer maneira de amor vale à pena. Toda forma de família é bem vinda. A diversidade e a pluralidade fazem parte da criação e da organização social. A tolerância deve prevalecer sobre a intolerância. As pessoas tem o direito de escolher como, quando e quantos filhos desejam ter. As instituições devem garantir as condições necessárias para o livre exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Revogam-se todas as disposições em contrário”.
Referências:
NATIONAL CATHOLIC REPORTER: Devemos ir além do impasse da “Humanae Vitae”, 26/01/2015
O FIEL CATÓLICO: Pecado mortal e pecado venial
HUMANAE VITAE: Carta Encíclica de Sua Santidade o Papa Paulo VI sobre a Regulação da Natalidade
ALVES, JED. Mitos e realidade da dinâmica populacional
_______________________
*Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br